15 junho 2015

...mas permanece o hematoma da alma e alguma coisa falta...







História de Amor sem palavras





Conheci a Mabel por causa dessas coisas da moda e não se vá pensar que sou um seguidor muito assíduo dos estilos em voga, mas às vezes, já se sabe, é incómodo estar sempre a nadar contra a corrente, e uma pessoa sucumbe sem comentários de maior à ideia de vestir umas calças um pouco mais largas ou mais aflautadas. Mas é da Mabel que eu quero falar e não da moda. Da Mabel, agora tão distante na hecatombe de recordações e calendários abandonados.

Era a mais nova de três irmãs, todas mudas de nascença, que dirigiam um pequeno negócio num bairro de Santiago. Tinham preparado o local ocupando, por causa do comércio, a ponta do salão, embora, para ser fiel às recordações, devesse dizer do living, porque os chilenos têm living, que é o que chamam ao conjunto de dois cadeirões, um sofá e uma mesa mal amanhada - faça o favor, entre, não fique aí fora, vamos conversar um bocadinho no living -, instituição quadrúpede que atribui à casa inegável estatuto.

Uma grossa e berrante cortina vermelha isolava o living da parte destinada ao atendimento do público, e a primeira vez que atravessei esses limites pareceu-me transpor os umbrais de outro mundo, de um universo comprimido em tempo, de uma atmosfera quieta, povoada de palmeiras anãs, fetos, lâmpadas cobertas com grandes quebra-nozes de cretone grenat, mesas redondas e cadeiras que permitiam manter as costas muito direitas. Agora que penso nisso - porque a recordação não existe a não ser relacionada com outras -, poder-se-ia dizer que era uma atmosfera proustiana perdida num bairro proletário. Não é elogio para ninguém nem para nada, mas atrevo-me a dizer que era uma atmosfera proustiana desprovida de tédio.

A Mabel e as irmãs ganhavam a vida arranjando gravatas e chapéus. Por muito pouco, punham em acção os seus três pares de mãos portentosas e, num abrir e fechar de olhos, a gravata vergonhosa de um magarefe transformava-se, perdia a largura de remo para se converter numa fita delgada que estava mesmo a pedir uma etiqueta italiana. Além disso, como cortesia da casa, ensinavam o magarefe gordo e suado a fazer como deve ser o nó Príncipe de Gales e, por sinais, indicavam-lhe que esse nó triangular que ele faz já não se usa, é ordinário, olhe, para não dizer ofensivo.

Outros chegavam com um chapéu de abas largas estilo Lucky Luciano e, depois de umas tesouradas certeiras, elas entregavam-lhes um tirolês digno de um chanceler austríaco. Entender-se com elas, e em especial com a Mabel, não constituía qualquer problema.

Se é certo que não podiam falar, podiam, em contrapartida, ouvir perfeitamente. Tratava-se apenas de elevar um bocadinho a voz, sem chegar ao escândalo do grito, e de modular bem as palavras, embora percebessem com os olhos tudo aquilo que não captavam bem com os ouvidos, e respondiam movendo os lábios com delicadeza, enfatizando com o apoio das mãos.

Gostei daquela atmosfera de silêncio desde o primeiro momento, e não é por ironia que o digo. Gostei e, por conseguinte, comecei a levar-lhes, uma a uma, as minhas gravatas.

As duas irmãs mais velhas tinham aqueles movimentos enérgicos que caracterizam os mudos. A Mabel, pelo contrário, era muito suave. Movia os lábios e as mãos com a ternura de um bom mimo, e a intenção das suas palavras podia medir-se no brilho do seu olhar. Tinha qualquer coisa que me atraía, e não era amor, disso tenho eu certeza. Tão-pouco me movia qualquer intenção mórbida. Não. Era o facto de saber que a Mabel pertencia àquele mundo de realidades estáveis, e esta permanência suspensa no tempo e tão ao alcance das minhas mãos. A Mabel era o feitiço de transpor a cortina de cor vermelha berrante e, uma vez do outro lado, sentir que a vida podia ter algum sentido. Como dizer? Sentir-se a salvo. É isso. Sentia-me a salvo do outro lado.

Quando se me acabou a reserva de gravatas dediquei-me a visitar as lojas de roupa usada e a comprar as mais largas que me apresentavam. Cheguei a adquirir algumas realmente arrepiantes, gravatas com paisagens campestres - com vaca e tudo - e marinhas, com monumentos nacionais dedicados a ilustres vencedores de batalhas perdidas, com vedetas do desporto, com retratos de cantores fora de moda, de antes de eu nascer, e nem imaginem os vendedores. Olhavam para mim como para um maluco caído do céu a quem podiam impingir toda a merda que a traça ia roendo nas montras.

A Mabel não tardou a descobrir o meu truque.

Nenhum homem podia ter tantas gravatas, e muito menos aqueles modelos tão exclusivos que eu submetia às hábeis mãos das três irmãs.

Uma tarde disse-me que eu não precisava de me arruinar a comprar mais gravatas. Que, se queria visitá-la, que fosse simplesmente visitá-la. Disse-me isto com a boca, com os olhos e com as mãos.

A minha vida mudou notoriamente. Deixei de ir ao bilhar, onde não me portava mal de todo; naquela altura, eu era já um dos trunfos do grupo quando se tratava de ganhar umas cervejas a algum palerma ali caído de repente. Todas as tardes saía do escritório e, dando uma grande volta para evitar encontros com os meus compinchas, dirigia-me para a loja das mudas. Tomávamos chá com bolachas e entendíamo-nos acerca de muitos temas com origem nos mexericos da vizinhança, até chegar a hora de ligar a telefonia. Ali, em silêncio, mamávamos a audição de tangas, as palavras pausadas e sentidas de outra Mabel, Mabel Fernández, que nos apresentava Uma Voz, Uma Melodia e Uma Recordação, através das ondas da Rádio Nacional e, mais tarde, bebendo uns discretos copinhos de vinho velho, seguíamos atentamente as histórias de A Terceira Orelha.

As irmãs possuíam um receptor como nem Marconi sonhou. Era um Errecêá Victor grande, com o desenho do cãozinho inclinado junto do gramofone, e ao qual o mestre Pepe, o electricista do bairro, fizera alguns acrescentas que permitiam ligar três pares de auscultadores, daqueles usados nos velhos rádios de galena.

Os cabos dos auscultadores não eram suficientemente compridos, de modo que as irmãs tinham de aproximar as cabeças do receptor adoptando o mesmo gesto atento do cãozinho, e eu divertia-me a vê-las apertar as mãos de cada vez que o vilão estava quase a alcançar os seus perversos propósitos, sentindo como se distendiam quando o herói se aproximava a toda a velocidade para salvar a rapariga.

Histórias de gangsters na Chicago da lei seca, do Oeste, com Buffalo Bill como protagonista, as mais variadas versões de Romeu e julieta, as proezas de Hercule Poirot e de Miss Marple, histórias de Sandokan, o Tigre da Malásia, e imagine-se quando chegava a Semana Santa: Vida, Paixão e Morte de NSJC e seus companheiros - tudo passava pelos corpos das três irmãs.

Passado pouco tempo estava transformado numa espécie de pensionista vespertino e, depois de uma breve discussão, as irmãs aceitaram que, pelo menos, eu pusesse o vinho para acompanhar as ceias e que aos domingos trouxesse as empadas.

Passavam-se os meses. À despedida, depois de ouvir As Histórias do Sinistro Doutor Mortis, a Mabel acompanhava-me até à porta e ali permanecíamos uns minutos vendo passar os raros automóveis. Eu, fumando um Liberty, ela tomando o fresco. Foi numa dessas despedidas que me indicou que desejava falar comigo a sós e me propôs que nos encontrássemos ao meio-dia do dia seguinte nas portas da Fancaria Alemã, aonde tinha de ir para comprar certos materiais.

Assim fizemos. O encontro tinha qualquer coisa de clandestino e eu sentia vergonha perante a possibilidade de ser visto por algum dos meus camaradinhas. Imaginava os comentários no bilhar, as piadas que teria de aguentar no dia em que regressasse aos tacos, e, acima de tudo, temia a possibilidade de acabar ao soco com alguns deles. Levei-a a um café afastado do centro, pedimos leite com baunilha e então disse-lhe que era a vez dela.

Aproximou a cadeira e, com os seus lábios silenciosos, foi-me dizendo palavras que eu entendia com toda a claridade no brilho dos seus olhos.

Estimava-me muito e alegrava-se por me ter como amigo - porque somos amigos, não é? -, disse que sabia que era uma mulher feia, bem, não tão feia como outras que andam por essas ruas, mas sabia que era magra, que não sabia andar daquela maneira que agrada aos homens, e sabia também que eu olhava para ela, não como quem olha para uma mulher qualquer, mas para uma amiga. Depois de hesitar por uns segundos, acrescentou que eu era o primeiro amigo que tinha na sua vida.

Peguei nas mãos dela entre as minhas. Senti que os olhares admirados que os criados nos dirigiam já não me importavam.

Era esta a primeira vez que se encontrava na rua com uma pessoa sem ser uma das irmãs, e esta primeira vez fazia-a sentir-se bem. Confiança. Era isso que sentia comigo. Confiança. Repetiu-o várias vezes. E como sentia essa confiança, desejava pedir-me uma coisa e, se eu lha negasse, graças a essa mesma confiança, a nossa amizade não sofreria o menor dano. Toda a sua vida consistia apenas em estar na loja, em casa, ir ao fanqueiro, às vezes tomar um gelado e visitar uma vez por mês a companhia da electricidade para pagar a conta da luz. Tinha trinta e cinco anos e durante toda a sua vida nunca fizera mais que isso.

- Um momento. Então nunca foste à escola, por exemplo?

Não. Os pais tinham considerado desgraça suficiente terem três filhas mudas em casa e negaram-se a exibi-las na vizinhança; além disso, na escola pública teriam sido objecto de brincadeiras - bem sabes como as crianças são cruéis -, e os colégios especiais ficavam muito longe, em distância e em dinheiro.

- Ainda não me disseste o que me queres pedir.

Que a levasse um pouco a ver o mundo. Não todos os dias, é claro. Supunha que eu devia ter outras amigas, uma noiva, era um rapaz bem parecido e respeitoso.
Não todos os dias, só de vez em quando. Que a levasse, por exemplo, ao cinema, onde nunca tinha entrado, e a brincar acrescentou que, quando muito, um dia havia de me atrever a convidá-la para um baile. É claro que não me devia assustar com as despesas. Ela dispunha do seu dinheiro e, se eu achasse bem, podíamos pagar as contas a meias.

Deixou-me gelado.

- Tu nunca foste ao cinema, ao circo, ao teatro? Negou com a cabeça e ficou a observar-me.

Disse-lhe que sim, que evidentemente. Que convidá-la para ir ao cinema era uma coisa em que eu pensava havia muito tempo e só por timidez me não atrevera a dizer-lho. Sem lhe largar as mãos disse-lhe, além disso, que não era verdade aquilo de ser uma mulher feia, e cometi até a obtusidade de lhe dizer que não aparentava os seus trinta e cinco anos.

Olhou para mim com ternura, inclinou-se e beijou-me suavemente na cara.

A Mabel e eu. Em pouco tempo nos tornámos devoradores de filmes em castelhano. Dispúnhamos dos cinemas Santiago e Esmeralda para nós. Não perdíamos nenhum com Libertad Lamarque, Mercedes Simone, Hugo del Carril, Imperio Argentina, Lucho Córdova, Sarita Montiel. Os filmes mexicanos, achava-os excessivamente lacrimejantes, com excepção dos de Cantinflas, é claro, e, terminada a função, atulhávamo-nos de lombinhos com abacate no Behamondes e subíamos ao morro de Santa Lúcia debicando um barquilho com amendoim. A Mabel nunca fora um ser triste, e com as nossas saídas transformou-se numa pessoa alegre.

A Mabel mudava em pormenores que não eram fáceis de entender à primeira vista. A Mabel mudava perante a estupefacção das irmãs mais velhas.

Um dia insistiu em que a acompanhasse a um cabeleireiro e transformou o seu cabelo de risco ao meio num penteado alto, «à Brenda Lee», segundo nos confessou a cabeleireira, e cortou uns centímetros aos vestidos. Uma tarde apareceu a tapar a boca com as mãos e só as retirou depois de estar ao meu lado. Tinha os lábios pintados e nos olhos um brilho que nunca me mostrara antes.

A Mabel estava a mudar, e a sua mudança não deixava de me agradar. Talvez por isso, tive a ideia de a convidar para um baile.

Santiago dos anos sessenta. Todos os sábados se podia escolher de entre uma vintena de festas organizadas por clubes ou colégios. Bailes para recolher fundos para o lar dos orfãos. Bailes para reunir pontos a favor desta ou daquela candidata a rainha de beleza. Bailes pelas vítimas do último terramoto. Bailes para ajudar o benemérito corpo de bombeiros. Bailes para recolher fundos para a viagem de estudo ao estrangeiro - quer dizer, a Mendoza - deste ou daquele curso de liceu. Bailes.

Decidi-me por um lugar onde nunca iam os membros do meu antigo grupo. O Centro Catalão. Um velho casarão da calle Companhia, que se caracterizava pela observância dos bons costumes e do manual de boas maneiras exigidos a toda a concorrência. A Mabel estava feliz. As irmãs, que não viam com muito bons olhos as nossas saídas, trabalharam como anãs de Branca de Neve na confecção do vestido. Durante uma semana estiveram dobradas diante da Singer, dá-que-dá ao pedal, e, no fim de tudo, a Mabel - como esquecê-la?

A Mabel vestida de organdi cor-de-rosa, sapatos da mesma cor e uma carteirinha de lantejoulas na mão.

Entre uma dança e outra bebíamos copinhos de ponche, evitávamos os atrevidos que nos ofereciam as suas garrafas de aguardente de Pisco introduzidas clandestinamente e púnhamos-nos de acordo quanto à candidata a rainha da festa que contaria com o nosso apoio. Nem lhe dava tempo para respirar, nem um minuto de pausa, para não me arriscar a que ela desse de caras com algum matulão que lhe pedisse para dançar. Nunca fui bom dançarino e Mabel, é claro, era a primeira vez que dançava, mas a orquestra tocava um mambo e lá estávamos nós, um pasodoble, vamos lá, uma cumbia, vamos lá, um tango, vamos lá, faz-se o que se pode. Por volta da meia-noite a orquestra fez uma pausa e foi substituída pelos discos, e lá estávamos nós no meio da pista, com Los Ramblers, Los Panchos, Neil Sedaka, Bert Kaempfer, Paul Mauriat, Adamo, abraçados, acariciados brandamente pela voz de capado de Elvis Presley que chorava na capela. A Mabel suava debaixo do organdi e eu sentia a brilhantina a escorrer pelo pesçoço.

- Estás muito bonita, Mabel, mesmo muito bonita - consegui eu dizer-lhe antes de sentir que uma mão me remexia no ombro.

Empalideci. Era o Salgado, um dos chefes do bilhar.

- Meu velho, agora já percebo porque é que desapareceste. Caladinho, sem dar cavaco. Vê lá se és educado e me apresentas a tua noiva.

Não sabia o que havia de responder e o Salgado, com toda a sua experiência, afastou-me para o lado e pegou na mão de Mabel.

- Muito prazer, Guillermo Salgado, Memo para os amigos. E a menina, minha querida, como é que se chama?

A Mabel olhava para mim de olhos muito abertos. Sorria.

- Que se passa, minha querida? Os ratos comeram-lhe a língua ou foi este larga tão que a acompanha que lha mordeu?

A Mabel deixou de sorrir e a mim custou-me abrir a boca para dizer:

- Não se passa nada. Já te apresentaste, portanto, esfuma-te e deixa-nos em paz.

O Salgado pegou-me no braço com força. Eu insultara-o na presença do seu par e aquilo não podia ficar assim.

- Meu velho, que maneiras são essas de tratar os amigos? Se a tua garina é muda, pois bem, é problema dela, não é razão para te chateares.

Rebentei-lhe o nariz com um murro, o que foi um enorme erro. O Salgado era muito mais forte e corpulento do que eu. Ainda surpreendido, mais pelo sangue que escorria abundantemente e lhe sujava a roupa e do que propriamente pelo murro, levantou-se e, no meio da gritaria, atirou-me uma direita a que não consegui esquivar-me e que me atingiu em cheio num olho.

Fomos expulsos do baile, mas cuidando de que a Mabel e eu saíssemos primeiro, enquanto tratavam o Salgado para lhe conterem a hemorragia. Através do olho fechado passavam dolorosas chispas de luz e pelo outro também não via muito, nublado que estava por umas lágrimas de escândalo e de vergonha.

Já na rua, tentava desculpar-me, enquanto a Mabel me aproximava um dedo dos lábios indicando-me que não devia falar. Apertava-me o braço com força, acariciava-me a cabeça, e não sei como fez, mas a verdade é que, enquanto esperávamos por um táxi, entrou numa cafetaria e regressou com um saco de cubos de gelo.

No táxi segurava-me a cabeça no colo com o saco de gelo sobre o olho fechado. Eu sentia-me estranho. Sentia-me cavaleiro andante. Sentia-me membro da Távola Redonda do rei Artur. Sentia-me, ao fim e ao cabo, macho, e lamentava não ter dinheiro suficiente para dizer ao taxista: «Vá andando e não pare até eu mandar».

- Perdoas-me?

-Chhh!

O vestido de Mabel era fino. Podia sentir-se o calor do corpo.

- Perdoas-me?

-Chhh!

O seu corpo era morno. As mãos revolviam-me o cabelo. Sentia na cara a dureza dos seus seios.

- Perdoas-me?

-Chhh!

Ergui o braço. Passei-lhe a mão pelo pescoço e puxei-lhe a cabeça.

Primeiro a Mabel permaneceu com a sua boca sobre a minha, surpreendida, sem reagir, mas ao esgravatar-lhe por entre os lábios, quando sentiu a minha língua entre os seus dentes, fechou os olhos e procurámos os recantos mais recônditos das nossas bocas. Beijámo-nos longamente, não sei por quanto tempo. Só sei que fomos interrompidos pela carraspeira discreta do condutor. Olhei para a rua e o mundo pareceu-me vazio e sem sentido. Estávamos parados pela luz vermelha de um semáforo num ponto da cidade que nunca tínhamos percorrido.

- Deixe-nos aqui. Quanto lhe devo?

Caminhámos abraçados, sem fazermos um ao outro um só sinal no nosso íntimo código. A única coisa que fazíamos era parar de tantos em tantos metros e beijarmo-nos, beijarmo-nos até sentirmos que era impossível suster a necessidade de respirar.

Assim, caminhando, chegámos a uma pequena praça deserta. Ocultos pela sombra de uma acácia, abracei-a com força e estiquei para baixo uma das minhas mãos. Toquei-lhe nos joelhos, nas suas pernas macias, finas e firmes. Continuei para cima. As coxas apertavam-se-lhe, tremiam. Meti os dedos debaixo do elástico do slip e fui percorrendo a superfície das suas nádegas duras como pedra, sentindo na ponta dos dedos o formigueiro produzido pela pelosidade do seu púbis e o calor húmido que lhe denunciava o sexo. De repente, sentia-a chorar. Estava escuro e ela não podia ler o movimento dos meus lábios perguntando se se sentia mal. Tentei afastar-me, mas a Mabel abraçou-me com força e, com toda a decisão, levou-me a mão à zona entre as pernas.

Aconteceu tudo muito depressa. O hotel, as luzes à altura dos sapatos, a cara invisível do recepcionista, os pés da criada que nos entregou as toalhas, a cama grande, o espelho na parede, a música absurda que nos chegava de orifícios secretos, o telefone inútil em cima da mesa-de-cabeceira, as caixinhas de fósforos com o logotipo do hotel, o vestido de organdi flutuando em cima da cadeira, a Mabel na semipenumbra, os seus seios pequenos, o seu cheirinho a colónia inglesa, o seu queixume sufocado pela almofada, o meu desbarato de esperma e sono e, mais tarde, o olho a doer-me outra vez, aguilhoado pela pungente claridade do alvorecer, o despertar na cama alheia, o procurar às apalpadelas uma Mabel que já não estava lá.

Ao enfrentar o espelho, vi que o olho era uma enorme mancha azul que me cobria quase um terço da cara. Por sorte era cedo e aos domingos não é costume haver muita gente nas ruas. Fui num táxi para o meu quarto, confiado que, com o auxílio de um pedaço de carne, o inchaço havia de diminuir, e à tarde, então, poderia sair ao encontro do meu mundo oculto atrás da cortina vermelho-viva. Mas o maldito inchaço não diminuía, antes pelo contrário, o olho começou a supurar uma substância leitosa. Fiquei todo o dia na cama, às escuras, e no dia seguinte dei baixa de doente no escritório. Com a ajuda de um médico amigo, que me diagnosticou uma gastroenterite fulminante, consegui três dias de baixa, que passei entre compressas de água com mostarda, a fumar e a pensar na Mabel.

Ao terceiro dia o olho estava a recuperar a normalidade e, pela tarde, munido previamente de óculos de sol, pus-me a caminho da casa das mudas.

Fui recebido pela irmã mais velha, que, como sempre, me convidou a passar para trás da cortina. E a Mabel? Ofereceu-me uma chávena de chá, dizendo-me que tinham do bom, do Ratampuro, e bolachas. E a Mabel? Respondeu-me por sinais que não estava, que tinho ido para o Sul, para casa de uns parentes, que se tinha sentido subitamente mal dos brônquios e que o ar do campo é muito bom nesses casos, não é?

Foi uma tarde comprida. As duas irmãs penduradas nos auscultadores. A audição de tangos, o Repórter Esso, o estúpido cão do Errecêá Victor inclinado sem olhar para mim, a versão radiofónica do Assassínio na Rua Mongue. A sopa de miúdos, a omeleta de aipo com arroz sarapintado, o leite queimado, o vinho velho. E a Mabel? Não. Não temos a direcção. São uns parentes distantes. Só a Mabel mantém contacto com eles. Não. Não disse quando volta.

O segundo, o terceiro, o quarto dia. As mesmas respostas esboçadas vagamente, mas para que cidade é que ela foi? Não sabemos. Só a Mabel é que sabe onde vivem. Ela não disse nada? Não disse nada da data de regresso. E se lhe acontecer alguma coisa? Que é que lhe pode acontecer. Ao menos não sabem em que província está? Não. Já lhe dissemos que...

Deixei de entrar em casa das mudas. Limitava-me a passar em frente da loja e, por entre os clientes que entravam ou saíam com as suas gravatas e chapéus, espreitava à procura da presença de Mabel.

Depois, nem sequer me chegava à porta da loja. Servia-me de uns rapazes que, a troco de uma moedas, me mantinham informado. Nada. Da Mabel nem o rasto. Nada. Nenhuma notícia da Mabel.

Uma pessoa acaba por conformar-se. Resigna-se a perder o nirvana. O pior castigo não é entregar-se sem lutar. O pior castigo é entregar-se sem ter podido lutar.
É como atirar a toalha para dentro do ringue por ausência do contendor e, embora levantem a mão ao pugilista entre bocejos, a sensação de derrota perdura até se transformar em resignação.

Regressei ao bilhar, aos tacos, a ganhar uma dúzia de cervejas ao primeiro incauto. O Salgado estava à minha espera e repetimos a função do nariz esmurrado e do olho fechado, duas, três vezes, até que terminámos com um aperto de mãos, declarando que a amizade tinha de ser assim, discutida.

A Mabel.

Com a passagem do tempo aprendi a esquecer as suas palavras-olhos, a dimensão dos seus adjectivos-lábios, a nitidez das suas mãos-substantivos. Com a passagem do tempo, passou o tempo sobre os meus passsos, e eu fui-me enchendo de esquecimentos que me foram esquecendo. A cidade de que falei já não existe, nem as ruas, nem a loja das mudas, nem as gravatas largas como remos, nem as palmeiras anãs, nem a atmosfera proustiana livre de decadências. Tudo sucumbiu. A música, o salão de bailes, o cão inclinado junto do gramofone. Tudo se perdeu, perdi. Perdeu-se há que tempos o inchaço do meu olho, mas permanece o hematoma da alma e alguma coisa falta, Mabel, alguma coisa falta, e por isso uma pessoa anda pela vida fora caminhando como um insecto coxo, como uma lagartixa sem rabo, ou coisa assim.

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