...as suas raízes agarravam-se ao coração da terra e tentavam beber dela uma última réstia de sangue...
História de uma montanha
Era de noite cerrada. A lua não estava no céu. A escuridão enchia toda a planície. Foi dentro da escuridão mais opaca que uma pedra pequena deslizou pela terra. Não foi o vento que a empurrou porque as folhas finas das árvores continuaram imóveis e invisíveis. Não foi nem um homem, nem um animal, que a empurrou. Passaram horas e nasceu o dia. A meio da manhã, a pedra continuava única numa superfície lisa de terra. Havia tanta luz sobre os campos. No fim da manhã, outra pedra começou a rebolar pela terra. Atravessou alguns metros a uma velocidade constante e parou-se quando, lentamente, se encostou à primeira pedra. Não foi o vento, nem nenhum homem, nem nenhum animal, que empurraram essa segunda pedra. Passou tempo e as duas pedras continuaram encostadas, paradas, sem história. Era o fim do inverno. Não choveu até ao início da primavera. Às vezes, passavam grandes pássaros de asas abertas, a planarem no céu dos campos. Pousavam nos ramos mais altos das árvores e não reparavam nas duas pedras, indistintas de tudo, que continuavam encostadas e imóveis no centro de uma clareira, no centro da planície. Às vezes, havia carreiros de formigas que contornavam as duas pedras e que também não reparavam nelas porque não as questionavam e porque continuavam sempre. Em abril, choveram gotas finas de chuva. Uma camada uniforme de chuva que cobriu a planície. Foi então que nasceu uma planta grossa junto às pedras. Cresceu o quanto conseguiu. Não voltou a chover nessa primavera. Não choveu durante o verão inteiro, a planta definhou sobre as duas pedras. A chuva de Outubro criou formas certas na terra e já nem as pedras, nem a planta, se distinguiam debaixo do pequeno monte redondo de terra que se erguia à altura dos tornozelos.
Quando regressaram os pássaros que regressavam com o sol, uma semente muito leve atravessou o ar num movimento irregular. Seria impossível prever o caminho que tomava porque traçava todo o tipo de curvas no ar: curvas lentas, longas, e, de repente curvas abruptas, ângulos. E começava a flutuar na direcção da terra que estava no centro da clareira, no centro da planicie. Durante duas semanas, o corpo leve da semente colou-se cada vez mais à terra até que, muito devagar, atravessou-a e entrou no seu interior. Passou um mês e os primeiros rebentos da planta rasgaram a terra. As suas folhas eram verdes, viçosas e jovens. A tarde começava a ficar fresca quando um coelho veio de longe. Antes de se aproximar do pequeno montinho, tremeu o nariz, como se estivesse a cheirar. Deu dois passos. Baixou a cabeça sobre uma folha nova da planta e, ao mesmo tempo, começou a mordê-la e a mastigá-la. Passou um instante. Um único instante. Esse instante não teria sido suficiente para virar a cabeça, não teria sido suficiente para respirar uma vez. Um lobo lançou-se sobre o coelho e despedaçou-o com os dentes. Com movimentos bruscos da cabeça, a rosnar de raiva, rasgou-lhe a pele e partiu-lhe ossos. Mastigou devagar a sua carne coberta de sangue e de terra. Saciado, continuou o seu caminho. Por momentos, as marcas das suas patas ficaram marcadas no pó. Sobre o monte de terra, ficou uma estrutura inerte de ossos, com pedaços agarrados de carne, pêlo ensanguentado, tripas e a cabeça intacta do coelho. Houve insectos que vieram de longe para pousar sobre os restos do coelho. Rebentaram formigueiros à sua volta. Muitos desses insectos morreram à volta dos ossos. Vieram pardais para perseguir os insectos com o bico. Alguns desses pardais morreram à volta dos ossos.
Passaram estações e mais pó foi arrastado sobre o monte. Chuva transformou o pó em barro. Rajadas de vento e brisas atiraram mais pó sobre o monte. Nasceram e morreram papoilas. Chuva transformou o pó em barro. Passaram cinquenta anos e o monte, no centro da clareira, no centro da planície, tinha já o tamanho da copa da árvore mais alta. Numa primavera, entre as plantas rasteiras que cobriam de verde o monte e toda a planície, houve um tronco fino que continuou a crescer. Depois de um ano, essa árvore tinha sete ramos. Depois de dois anos, não era possível contar todos os ramos que tinha. Ao longo do tempo, muitos pássaros fizeram ninhos nos seus ramos. A sua copa abriu-se. As suas folhas caíram em todos os outonos. Mais de cem anos depois, num ano em que não choveu, todo o interior da árvore secou. A madeira maciça estalou em rachas que atravessaram toda a grossura do tronco. Nesse tempo, havia já outras árvores que nasciam nas encostas íngremes do monte. As suas raízes agarravam-se ao coração da terra e tentavam beber dela uma última réstia de sangue. Ao rés do tronco dessas árvores desesperadas, ervas secas colavam-se à terra. No interior do monte, grãos de pó fundiam-se e transformavam-se em pedras. O monte era mais alto do que três árvores, mas morria lentamente. A primeira árvore caía aos poucos sobre o monte, partiam-se ramos velhos. As outras árvores, fracas, beberam a última gota de vida na terra do monte e foi como se suspendessem a respiração. O tempo parou e tanto as suas folhas murchas como os seus ramos se prepararam para morrer. Foi nesse instante que se desprendeu a primeira gota do céu e atravessou toda a distância do ar até cair sobre a terra do monte e se misturar com ela. A chuva que caiu a seguir partiu mais alguns ramos da árvore e atirou-os de encontro ao interior da terra. Passaram décadas. Passaram cem anos. Passaram mais cem anos. Passaram mais cem anos. Nasceram e morreram árvores sobre o monte. Nasceram e morreram animas naquele monte que, então, se levantava orgulhoso sobre a planície. Num dia de janeiro, depois de ter chovido, a água que escorria pela encosta do monte não parou de escorrer. O seu caminho abriu um leito na terra, que continuava pela planície, que continuava até ao horizonte e que continuava depois do horizonte.
Passaram anos em que a água ganhou cada vez mais força. Nas suas margens, cresceram plantas emaranhadas onde os pássaros cantavam as suas melodias mais extravagantes. Foi no início de um Verão que chego o primeiro homem.
Sentado numa carroça, segurava as rédeas de dois cavalos cansados. O homem saiu da carroça, saiu a mulher que chegou com ele e, depois de desprender os cavalos, levou-os a beber a água que escorria pela encosta. Durante algumas semanas, sem ajuda, o homem construiu uma casa a pouca distância da água, no ponto em que a planície começava, no ponto em que a encosta do monte acabava. Nas noites desse Verão, a mulher fazia sempre uma fogueira. O rosto do homem iluminava-se e começava a contar aquilo que imaginava e aquilo de que se lembrava. Foi o homem que, pela primeira vez, olhou para o monte e lhe chamou «montanha». Foi ele que, numa dessas noites, lhe invemtou um nome. Antes de adormecerem, o homem e a mulher faziam amor iluminados pela fogueira. O seu filho mais velho nasceu na Primavera seguinte. O seu filho mais novo nasceu dois anos depois. Ainda crianças, iam muitas vezes brincar para a montanha. Subiam a árvores, atiravam pedras a pardais. Foram os dois enterrados, o mais novo primeiro, o mais velho depois, em covas que foram abertas lado a lado na encosta da montanha. Na manhã em que enterraram o mais velho, passava mais de 60 anos sobre o dia em que o seu pai tinha chegado ali.
Nessa manhã, havia já mais casas a pouca distância da casa que o seu pai havia construído durante um verão, e que tinha alargado ao longo da sua vida. As pessoas que viviam nessas casas acompanharam o momento em que baixaram o seu caixão na cova que ficava ao lado da cruz que assinalava o lugar do irmão, na encosta da montanha. Quando a última pá de terra o cobriu, os homens que acompanharam o momento voltaram a colocar os chapéus na cabeça e desceram em direcção à aldeia. Nesse tempo, o sol punha-se na aldeia mais de meia hora mais cedo porque ficava tapado pela montanha. Passaram gerações. Houve casais que foram felizes e casais que foram infelizes. Nasceram crianças e morreram velhos. Passaram gerações. Mudaram modas. Durante um período, havia uma árvore na montanha onde os mais tristes se iam enforcar. Essa árvore foi cortada com uma serra. Os homens que seguraram os dois lados da serra já tinha cortado muitas árvores durante as suas vidas, mas disseram que nenhuma tinha sido tão rija como aquela e espalharam toda a espécie de histórias. Foi nessa altura que a montanha ganhou o nome que ainda hoje tem. Hoje, agora, tantas gerações depois do dia em que cortaram essa árvore. Tantos séculos depois. Levanto o olhar do caderno e vejo as luzes da cidade que, lá em baixo, estão já a acender-se. Vou começar agora a descer. Quando chegar lá a baixo será noite cerrada.
(...porque razão a minha vidinha estúpida não é assim tão normal???... :(( )
Era de noite cerrada. A lua não estava no céu. A escuridão enchia toda a planície. Foi dentro da escuridão mais opaca que uma pedra pequena deslizou pela terra. Não foi o vento que a empurrou porque as folhas finas das árvores continuaram imóveis e invisíveis. Não foi nem um homem, nem um animal, que a empurrou. Passaram horas e nasceu o dia. A meio da manhã, a pedra continuava única numa superfície lisa de terra. Havia tanta luz sobre os campos. No fim da manhã, outra pedra começou a rebolar pela terra. Atravessou alguns metros a uma velocidade constante e parou-se quando, lentamente, se encostou à primeira pedra. Não foi o vento, nem nenhum homem, nem nenhum animal, que empurraram essa segunda pedra. Passou tempo e as duas pedras continuaram encostadas, paradas, sem história. Era o fim do inverno. Não choveu até ao início da primavera. Às vezes, passavam grandes pássaros de asas abertas, a planarem no céu dos campos. Pousavam nos ramos mais altos das árvores e não reparavam nas duas pedras, indistintas de tudo, que continuavam encostadas e imóveis no centro de uma clareira, no centro da planície. Às vezes, havia carreiros de formigas que contornavam as duas pedras e que também não reparavam nelas porque não as questionavam e porque continuavam sempre. Em abril, choveram gotas finas de chuva. Uma camada uniforme de chuva que cobriu a planície. Foi então que nasceu uma planta grossa junto às pedras. Cresceu o quanto conseguiu. Não voltou a chover nessa primavera. Não choveu durante o verão inteiro, a planta definhou sobre as duas pedras. A chuva de Outubro criou formas certas na terra e já nem as pedras, nem a planta, se distinguiam debaixo do pequeno monte redondo de terra que se erguia à altura dos tornozelos.
Quando regressaram os pássaros que regressavam com o sol, uma semente muito leve atravessou o ar num movimento irregular. Seria impossível prever o caminho que tomava porque traçava todo o tipo de curvas no ar: curvas lentas, longas, e, de repente curvas abruptas, ângulos. E começava a flutuar na direcção da terra que estava no centro da clareira, no centro da planicie. Durante duas semanas, o corpo leve da semente colou-se cada vez mais à terra até que, muito devagar, atravessou-a e entrou no seu interior. Passou um mês e os primeiros rebentos da planta rasgaram a terra. As suas folhas eram verdes, viçosas e jovens. A tarde começava a ficar fresca quando um coelho veio de longe. Antes de se aproximar do pequeno montinho, tremeu o nariz, como se estivesse a cheirar. Deu dois passos. Baixou a cabeça sobre uma folha nova da planta e, ao mesmo tempo, começou a mordê-la e a mastigá-la. Passou um instante. Um único instante. Esse instante não teria sido suficiente para virar a cabeça, não teria sido suficiente para respirar uma vez. Um lobo lançou-se sobre o coelho e despedaçou-o com os dentes. Com movimentos bruscos da cabeça, a rosnar de raiva, rasgou-lhe a pele e partiu-lhe ossos. Mastigou devagar a sua carne coberta de sangue e de terra. Saciado, continuou o seu caminho. Por momentos, as marcas das suas patas ficaram marcadas no pó. Sobre o monte de terra, ficou uma estrutura inerte de ossos, com pedaços agarrados de carne, pêlo ensanguentado, tripas e a cabeça intacta do coelho. Houve insectos que vieram de longe para pousar sobre os restos do coelho. Rebentaram formigueiros à sua volta. Muitos desses insectos morreram à volta dos ossos. Vieram pardais para perseguir os insectos com o bico. Alguns desses pardais morreram à volta dos ossos.
Passaram estações e mais pó foi arrastado sobre o monte. Chuva transformou o pó em barro. Rajadas de vento e brisas atiraram mais pó sobre o monte. Nasceram e morreram papoilas. Chuva transformou o pó em barro. Passaram cinquenta anos e o monte, no centro da clareira, no centro da planície, tinha já o tamanho da copa da árvore mais alta. Numa primavera, entre as plantas rasteiras que cobriam de verde o monte e toda a planície, houve um tronco fino que continuou a crescer. Depois de um ano, essa árvore tinha sete ramos. Depois de dois anos, não era possível contar todos os ramos que tinha. Ao longo do tempo, muitos pássaros fizeram ninhos nos seus ramos. A sua copa abriu-se. As suas folhas caíram em todos os outonos. Mais de cem anos depois, num ano em que não choveu, todo o interior da árvore secou. A madeira maciça estalou em rachas que atravessaram toda a grossura do tronco. Nesse tempo, havia já outras árvores que nasciam nas encostas íngremes do monte. As suas raízes agarravam-se ao coração da terra e tentavam beber dela uma última réstia de sangue. Ao rés do tronco dessas árvores desesperadas, ervas secas colavam-se à terra. No interior do monte, grãos de pó fundiam-se e transformavam-se em pedras. O monte era mais alto do que três árvores, mas morria lentamente. A primeira árvore caía aos poucos sobre o monte, partiam-se ramos velhos. As outras árvores, fracas, beberam a última gota de vida na terra do monte e foi como se suspendessem a respiração. O tempo parou e tanto as suas folhas murchas como os seus ramos se prepararam para morrer. Foi nesse instante que se desprendeu a primeira gota do céu e atravessou toda a distância do ar até cair sobre a terra do monte e se misturar com ela. A chuva que caiu a seguir partiu mais alguns ramos da árvore e atirou-os de encontro ao interior da terra. Passaram décadas. Passaram cem anos. Passaram mais cem anos. Passaram mais cem anos. Nasceram e morreram árvores sobre o monte. Nasceram e morreram animas naquele monte que, então, se levantava orgulhoso sobre a planície. Num dia de janeiro, depois de ter chovido, a água que escorria pela encosta do monte não parou de escorrer. O seu caminho abriu um leito na terra, que continuava pela planície, que continuava até ao horizonte e que continuava depois do horizonte.
Passaram anos em que a água ganhou cada vez mais força. Nas suas margens, cresceram plantas emaranhadas onde os pássaros cantavam as suas melodias mais extravagantes. Foi no início de um Verão que chego o primeiro homem.
Sentado numa carroça, segurava as rédeas de dois cavalos cansados. O homem saiu da carroça, saiu a mulher que chegou com ele e, depois de desprender os cavalos, levou-os a beber a água que escorria pela encosta. Durante algumas semanas, sem ajuda, o homem construiu uma casa a pouca distância da água, no ponto em que a planície começava, no ponto em que a encosta do monte acabava. Nas noites desse Verão, a mulher fazia sempre uma fogueira. O rosto do homem iluminava-se e começava a contar aquilo que imaginava e aquilo de que se lembrava. Foi o homem que, pela primeira vez, olhou para o monte e lhe chamou «montanha». Foi ele que, numa dessas noites, lhe invemtou um nome. Antes de adormecerem, o homem e a mulher faziam amor iluminados pela fogueira. O seu filho mais velho nasceu na Primavera seguinte. O seu filho mais novo nasceu dois anos depois. Ainda crianças, iam muitas vezes brincar para a montanha. Subiam a árvores, atiravam pedras a pardais. Foram os dois enterrados, o mais novo primeiro, o mais velho depois, em covas que foram abertas lado a lado na encosta da montanha. Na manhã em que enterraram o mais velho, passava mais de 60 anos sobre o dia em que o seu pai tinha chegado ali.
Nessa manhã, havia já mais casas a pouca distância da casa que o seu pai havia construído durante um verão, e que tinha alargado ao longo da sua vida. As pessoas que viviam nessas casas acompanharam o momento em que baixaram o seu caixão na cova que ficava ao lado da cruz que assinalava o lugar do irmão, na encosta da montanha. Quando a última pá de terra o cobriu, os homens que acompanharam o momento voltaram a colocar os chapéus na cabeça e desceram em direcção à aldeia. Nesse tempo, o sol punha-se na aldeia mais de meia hora mais cedo porque ficava tapado pela montanha. Passaram gerações. Houve casais que foram felizes e casais que foram infelizes. Nasceram crianças e morreram velhos. Passaram gerações. Mudaram modas. Durante um período, havia uma árvore na montanha onde os mais tristes se iam enforcar. Essa árvore foi cortada com uma serra. Os homens que seguraram os dois lados da serra já tinha cortado muitas árvores durante as suas vidas, mas disseram que nenhuma tinha sido tão rija como aquela e espalharam toda a espécie de histórias. Foi nessa altura que a montanha ganhou o nome que ainda hoje tem. Hoje, agora, tantas gerações depois do dia em que cortaram essa árvore. Tantos séculos depois. Levanto o olhar do caderno e vejo as luzes da cidade que, lá em baixo, estão já a acender-se. Vou começar agora a descer. Quando chegar lá a baixo será noite cerrada.
(...porque razão a minha vidinha estúpida não é assim tão normal???... :(( )
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