...contribuímos para o seu sofrimento, porque a nossa mágoa momentânea não lhes serve de consolo...

Misericórdia
As pessoas que julgam as outras apenas pela aparência são antipáticas e mal-educadas. Existem muitos pensamentos escondidos por trás dos seus olhos. Algumas dessas maquinações são impossíveis de entender porque são baseadas em detalhes que têm significado unicamente para essas pessoas. Essas são as pessoas que acreditam que conhecer todas as regras da sociedade e que lhes encontram uma lógica evidente. Há muito tempo que aceitaram todas essas regras, há tempo suficiente para já não serem capazes de perceber a possibilidade, ainda menos a pertinência, de outros mundos, de outras escolhas e de outras experiências. Aos seus olhos, o essencial é simples. Branco é branco. Preto é preto. Todas as linhas são rectas. A partir de certo ponto, nunca conseguem explicar aquilo que sabem porque é tudo tão óbvio. Então não vês?, repetem. As suas frases são feitas de cimento e tijolos, como muros. No entanto, a solidez do significado de cada uma das suas palavras existe apenas para eles próprios e para aqueles que conseguem subjugar: os que dependem deles, os que não têm outra possibilidade senão aceitar as suas ideias ou que, na maior parte das vezes, abanam a cabeça afirmativamente e fingem que aceitam as suas ideias.
As pessoas que julgam as outras apenas pela aparência são tristes e inseguras. Têm medo. Têm medo que o poder em que só eles acreditam lhes seja retirado Quando são homens casados, têm medo que os outros lhes roubem a mulher que maltratam. Defendem com todas as forças, com ódio, as regras em que gastaram todo o seu tempo. Não podem permitir que chegue alguém, vindo não se sabe de onde, e lhes leve a ilusão de que aquilo que tentam ser tem um sentido profundo.
Por isso, sofrem. Nunca poderão admiti-lo, faz parte do seu silêncio, mas as pessoas que julgam as outras apenas pela aparência são aquelas que sofrem mais. Encontram rostos insuficientes para os seus monstros negros, gigantes e sem rosto. O seu desdém, arrogância, aparente desprezo é a capa fina com que não conseguem tapar metade da sua fragilidade. Sozinhos, tentam em vão calar as vozes que lhes gritam aquilo que mais temem. A superioridade que repetem para si próprios no momento em que julgam os outros pela aparência é a inferioridade que os olha de frente, que sabem certa, que sentem afundar-se no seu interior mais profundo, quando, apesar de todos os esforços, apesar de toda a resistência, não conseguem evitar ficar frente a um momento vazio, que é como um espelho, como uma agulha.
As pessoas que julgam as outras apenas pela aparência existem em todos os estratos sociais, em todas as profissões, em todas as ruas. Tem todas as idades, todos os pesos, todas as alturas. São sempre antipáticas e mal-educadas, tristes e inseguras. Quando são cientistas, valorizam apenas a ciência. Quando são pedreiros, valorizam apenas o trabalho braçal. Quando são pescadores à linha, valorizam apenas a pesca à linha. Os seus mundos são pequenos porque eles próprios fizeram por reduzi-los, acreditando que assim conseguiriam chegar a uma dimensão em que nada lhes fugisse ao controlo. Nunca conseguem, e essa, para lá da solidão, para lá da verdade, é também a sua grande tragédia. Sofrem muito. Secretamente, admiram aqueles que mais condenam.
Este texto será lido por algumas pessoas que julgam as outras apenas pela aparência. Tu não és uma dessas pessoas, claro. Eu também não, obviamente. Mas essas pessoas não estão muito longe de nós. Eu e tu cruzámo-nos com elas na rua. Tivemos até conversas mais ou menos longas. Interessámo-nos por um assunto que partilhámos. Em algum momento, talvez, essas pessoas julgaram-nos, a mim e a ti, apenas pela nossa aparência. Então, ou reparámos, ou não reparámos nesse olhar. Se não reparámos, cometemos a maior ofensa que se pode cometer contra as pessoas que julgam as outras apenas pela aparência: ignorámo-las e acrescentámos solidão ao peso quase insuportável da sua solidão. Se reparámos, é possível que nos tenhamos sentido momentaneamente magoados e, também nesse caso, contribuímos para o seu sofrimento, porque a nossa mágoa momentânea não lhes serve de consolo, porque nada lhes serve de consolo.
As pessoas que julgam as outras apenas pela aparência perseguem um ideal de pureza absoluto e impossível. Por um lado, desejam que todos os outros seres humanos que compõem o mundo sejam iguais a eles até ao mínimo pormenor mais abstracto; por outro lado, necessitam que esses mesmos seres humanos sejam um pouco diferentes porque, de outro modo, não têm nenhuma possibilidade de sobressair, de serem apontados como exemplo admirável. Esta contradição radical, entre várias outras, é a raiz do seu sofrimento. Uma dor tão profunda que os acompanha quando estão sentados atrás da secretária, quando se vestem de manhã, quando lêem a ementa no restaurante. Também por isso, não devemos querer-lhes mal. O verdadeiro desafio é tentar compreendê-los. Olhá-los com humanidade e dizer-lhes: amigo, não estás sozinho, creio que consigo compreender uma parte do teu sofrimento. Como é natural, eles responderão com antipatia e má educação, é esse o instinto que cultivaram, que nunca quiseram reprimir; e, ao mesmo tempo, no seu íntimo, estarão a desenvolver todos os esforços possíveis para esconder sempre a imensa tristeza e a insegurança insanável.
Há muitos motivos para agir com compreensão e paciência, o mais forte de todos poderá ser a certeza de que essas pessoas que julgam os outros apenas pela aparência, quando estiverem sozinhas, sentir-se-ão ligeiramente mais acompanhadas. A fúria inclemente da sua dor encontrará uma ponta de alívio. A nós, longe desse momento que não poderemos nunca testemunhar, estar-nos-á destinado o conforto de termos praticado um acto com tradições profundas na história da humanidade, que tem nome há mais de dois mil anos e que ainda hoje se chama misericórdia .
José Luís Peixoto
...este texto lembra-me um passado conturbado... com uma raiva imensa, que acabou com parte de mim, e que nunca pensei sentir... de facto, é simples julgar e fazer juízos de valor, nunca tendo passado por certas situações... aquela pessoa parecia que não era eu, eu nunca reagiria assim... e no entanto reagi...




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