20 agosto 2009

...o soldado escutou, pela primeira vez, o sotaque do corpo dela...




Prostituição auditiva



O português gostava era de ouvir as pronuncias dela. Pagava notas só para a ficar escutando a noite inteira. Mariana não tinha que fazer mais nada: só divagar, devagar, sem sexo nem nexo. O tuga, militar até aos botões, só queria que a prostituta falasse.


- Mas falar o quê?


A primeira noite ainda a moça perguntou. Depois, entendeu que ele gostava era de nenhumices, simples perfumes de sílabas. O homem estaria ali por livre e não espontânea vontade? Enfim, coisas de branco.


- Vocês, as pretas, não são como as nossas mulheres.
- Como não somos?
- Vocês falam com o sangue.


Mariana ainda insistiu em namoriscar, remexendo as carnes, toda ela oferecível. Mas ele nada. Ficava quieto, só os olhos desembarcavam no corpo dela. A prostituta até se ofendia com aquela inactuância do macho. Seria porque ela não apresentava tatuagens, como os homens da sua raça requeriam? Mulher sem riscos na flor da pele é mulher escorregadiça. Esse é o mandamento da tradição. Mas parece não era.


- É escusado, Mariana. Eu não toco em preta. Fui educado assim.
- Ao menos me espalhe um creme, mezungo.
- Um creme?
- É que nós, pretas, secamos mais que lagartos. É nossa raça, assim. Me esfregue um creme, me faça um favor.


Mas ele recusava, nem pele, nem óleo. Alergia a gorduras, justificava já em antecipado arrepio. Ela, então, a si mesma se besuntava. Demorava os finos dedos nas intimidades, escorria sensualidade pelas reentrâncias. Depois, já bem abrilhantinada, ela se rebolinava à frente do militar lusitano.


- Ainda você não me quer?


Negativo. Mariana, já sem fogo, deitava em esteira e palavreava sem fim. No colchão rasteiro, o portuga adormecia. Ela ainda ficava falando por um tempo, até se certificar de que ele descera às fundezas.


Horas depois ele se apressava a sair. Pagava os variáveis honorários: Ela amarfanhava os dinheiros no soutien. Já sabia o seguinte: antes de sair, o branco lhe pedia para cheirar as notas, tomava-as como se fossem delicadas flores e nelas aspirava fundamente o cheiro do suor dela. Depois, tocava as notas e dizia:


- Eu transpiro para as ter, tu tem-las transpiradas.


Ela sorria sem entender o repuxado português, quem sabe era uma simples lusofolia. Ao despedir-se, a mulher sempre insistia em lhe perguntar o nome, apelido de sua existência. Mas ele suavemente se desleixava: nunca, nem jamais.


- Meu nome? Não interessa, não te interessa.


Ele não queria, não podia, não devia. Branco que frequenta as negras não leva sobrenome. É um soldado, ponto final. E colocando um dedo ríspido sobre os lábios de Mariana chegou mesmo a ameaçar: que nunca mais se atrevesse a querer saber da identidade dele.


Até que certa noite a prostituta se apresentou afónica, enguiçada nas cordas.


- Hoje não tenho palavra para lhe dar, soldado.


Foi murmúrio único. Ele se sentou. Sentiu, antecipada, a carência da voz dela. Nunca concebeu que a falta desse reconforto lhe viesse a doer tanto. Olhou para Mariana, estranhando. Canoa se inventou antes do rio? O militar se aprontou em serviço de cozinha. Instantaneou um chá, desses curadouros de gargantas. Mariana se consolou mais com o
gesto dele que com o remédio. Rodou a chávena de alumínio enquanto olhava para nada.


- É que bateram em Helena. Mataram ela!
- Quem é essa Helena?
- Era uma outra... colega.


Ela dobrou as costas, chorando. O militar se sentou por trás dela e lhe falou. Com voz de mar, suas palavras eram vagas que nunca encontravam praia. E contou-lhe da sua tristeza. Sim, ele também sabia o que era ver morrer um colega. E se perguntava, tal como ela:


- Que faço eu no meio disto tudo? Esta guerra, de quem é esta
guerra?


A prostituta deu por ele limpando o rosto na manga. Uma furtiva tristeza, véspera de lágrima? Entendeu tocar-lhe o cabelo, esse cabelo fino que faz com que os brancos aparentem bonecos de brincar. Mas já o português pegava a caixinha do creme.


- Deixa, eu te esfrego, Mariana.


Ela sobrancelhou uma surpresa. Ele aceitava tocar-lhe?! Voltou a sentar, oferecendo as costas. A mão dele sonhou, divagante e devagarosa. Os dedos recheados de óleo pareciam chuva escorrendo sobre água. Mariana sentia o aconchego dele.


E eles, muito ambos, aconteceram-se. O soldado escutou, pela primeira vez, o sotaque do corpo dela. O mundo a perder de vistas, o rio perdendo as margens. No final, bem no fim de tudo, ele se estendeu na esteira e olhando para além do tecto, disse:


- Sou Raimundo, o major Raimundo!

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