26 agosto 2009

Receita para um jet-set nacional




Em Moçambique não é preciso ser rico. O essencial é parecer rico.
Entre parecer e ser vai menos do que um passo, a diferença entre um
tropeço e a trapaça. No nosso caso, a aparência é que faz a
essência. Daí que a empresa comece pela fachada, o empresário de
sucesso comece pelo sucesso da sua viatura, a felicidade do casamento
se faça pela dimensã da festa. A ocasião, diz-se, é que faz o
negócio. E é aqui que entra a encenação do nosso jet-set.


O jet-set, como todos sabem, é algo que ninguém sabe o que é. Mas
reúne gente de luxo, a gente vazia que enche de vazio as colunas
sociais. O jet-set moçambicano está ainda no início. Aqui seguem
algumas dicas que, durante o próximo ano, ajudarão qualquer pelintra
a candidatar-se a um jet-setista. Haja democracia! As sugestões são
gratuitas e estão dispostas na forma de um pequeno manual por desordem
alfabética:


Anéis - são imprescindíveis. Fazem parte da montra. O princípio
é: quem tem boa aparência, é bem aparentado. E quem tem bom parente
está a meio caminho para passar dos anéis do senhor à categoria de
Senhor dos Anéis. O jet-setista nacional deve assemelhar-se a um
verdadeiro Saturno, tais os anéis que rodeiam os seus dedos. A ideia
é que ninguém confunda um jet-setista com um maçaiga (mineiro), um
pobre, um coitado. Deve-se usar jóias do tipo matacão, ouro e pedras
preciosas tão volumosos que se poderiam chamar de penedos preciosos.

A acompanhar a anelagem deve exibir-se um cordão de ouro bem visível
entre a camisa desabotoada.


Boas maneiras - não se devem ter. Nem pensar. O bom estilo é
agressivo, o arranhão, o grosseiro. Um tipo simpático, de modos
afáveis e que se preocupa com os outros? Isso, só uma pessoa que
necessita da aprovação da sociedade. O jet-setista nacional não
precisa da aprovação de ninguém, já nasceu aprovado. Daí os seus
ares de chefe, de gajo mandão, que olha o mundo inteiro com
superioridade de patrão. Pára o carro no meio da estrada atrapalhando
o trânsito, fura a bicha, passa à frente, pisa o cidadão anónimo.
Onde os outros devem esperar, o jet-setista aproveita para exibir a sua
condição de criatura especial. O jet-setista nao se sujeita a
condições: telefona e manda. Quando não desmanda.


Cabelo - o nosso jet-setista anda a reboque das modas dos outros. O
que vem dos americanos: isso é que é bom. Espreita a MTV e fica
deleitado com uns moços cuja única tarefa na vida é fazer de conta
que cantam. Os tipos são fantásticos, nesses vídeoclips: nunca se
lhes viu ligação alguma com o trabalho, circulam em viaturas a
abarrotar de miúdas descascadas. A vida é fácil para esses meninos.
De onde lhes virá o sustento? Pois esses queridos fazem questão em
rapar o cabelo à moda militar, para demonstrar a sua agressividade
contra um mundo que os excluiu mas que, ao que parece, lhes abriu a
porta para uns quantos luxos. E esses andam de cabelo rapado. Por enquanto.


Cerveja - o nosso matreco desafia as leis da física: a sua solidez
vem dos líquidos. O candidato a jet-setista não simplesmente bebe.
Ele tem de mostrar que bebe. Parece um reclame publicitário ambulante.
Encontramos o nosso matreco de cerveja na mão em casa, na rua, no
automóvel, na casa de banho. As obcessões do candidato a jet-set
nacional variam entre o copo e o corpo (os tipos, lá na TV,
ginasticam-se bem, vazam copos e enchem os corpos de musculaças). As
garrafas ou latas vazias são deitadas para o meio da rua. Deitar a
lata no depósito do lixo é coisa demasiado "educadinha". Boa
educação é para os pobres. Bons modos são para quem trabalha.
Porque a malta da pesada não precisa de maneiras. Respeito? Isso o
dinheiro não compra. Antes vale que os outros tenham medo. É mais
rápido e o nosso herói, como sabemos, não suporta esperar.


Chapéu - é fundamental. Mas o verdadeiro jet-setista não usa
chapéu quando todos os outros o usam: ao sol. Eis a criatividade do
matreco nacional: chapéu ele usa na sombra, no interior das viaturas e
sob o tecto das casas. Deve ser um chapéu que dê nas vistas. Muito
aconselhável é o chapéu de cowboy à la Texana. Para mostrar a
familiaridade do nosso matreco com a rudeza dos domadores de cavalos.
Com aqueles que põem o planeta na ordem. Na sua ordem.


Cultura - o jet-setista não lê, não vai ao teatro. A única coisa
que lê são os rótulos de uísque. A única música que escuta são
umas "rapadas" e umas merengadas que ele generosamente emite da
aparelhagem do automóvel por toda a cidade. Os tipos da cultura são,
no entender do matreco nacional, uns desgraçados que nunca ficarão
ricos. O segredo é o seguinte: o jet-setista não precisa de estudar.
Nem de ter curriculum vitae. Para quê? Ele não vai concorrer, os
concursos é que vão ter com ele. E para abrir portas basta-lhe o
nome. O nome da família, entenda-se.


Carros - o matreco nacional fica maluquinho com viaturas de luxo. É
quase uma tara sexual, uma espécie de droga legalmente autorizada. O
carro não é para o nosso jet-setista um instrumento, um objecto. É
uma divindade, um meio de afirmação. Se pudesse, o matreco levava o
automóvel para a cama. E, de facto, o sonho mais erótico do nosso
jet-setista não é com uma Mercedes. É com um Mercedes.


Fatos - têm de ser de Itália. Para não correr o risco de investir
em vão, aconselha-se a usar o casaco com os rótulos de fora, não vá
a origem da roupa passar despercebida. Um lencinho pode espreitar do
bolso, a sugerir que outras coisas podem de lá sair.


Simplicidade - a simplicidade é um pecado mortal para a nossa
matrecagem. Sobretudo, quando se é filho de gente grande. Neste caso,
deve-se gastar à larga e mostrar que isso de país pobre é para os
outros. Porque eles (os meninos de boas famílias) exibem mais
ostentação que os filhos dos verdadeiros ricos dos países
verdadeiramente ricos. Afinal ficámos independentes para quê?


Óculos escuros - essenciais, haja ou não haja claridade. O style
- ou em português, o estilo - assim o exige. Devem ser usados em
casa, no cinema, enfim, em tudo o que não bate o sol directo. O
matreco deve dar a entender que há uma luz especial que lhe vem de
dentro da cabeça. Essa a razão do chapéu, mesmo na maior obscuridade.


Telemóvel - ui, ui, ui! O celular ou telémovel já faz parte do
braço do matreco, é a sua mais superior extremidade inferior. A
marca, o modelo, as luzinhas que acendem, os brilhantes, tudo isso
conta. Mas importa, sobretudo, que o toque do celular seja audível a
mais de 200 metros. Quem disse que um jet-setista não tem relação
com a música clássica? Volume no máximo, pelo aparelho passam os
mais cultos trechos: Fur Elise, de Beethoven, a Rapsódia Húngara de
Franz Liszt, O Danúbio Azul de Strauss. No entanto, a melodia mais
adequada para as condições higiénicas de Maputo é O Voo do
Moscardo. Última sugestão: nunca desligue o telémovel! O que, em
outro lugar, é uma prova de boa educação pode, em Moçambique, ser
interpretado como um sinal de fraqueza. Em conselho de ministros, na
confissão da igreja, no funeral do avô: mostre que nada é mais
importante que as suas inadiáveis comunicações. Você é que é o
centro do universo!


(Mia Couto, in Pensatempos, 2005)
(publicado em Savana, Janeiro de 2003)


(...acho que já anda um texto semelhante por aqui, mas hoje casualmente, encontrei este texto numa pesquisa num newsgroup por onde pairei em tempos, e onde deixei também este texto do Mia Couto... mas, cada vez as revistinhas cor-de-rosa-amor me chateiam mais... e o pior é que actualmente, todas caiem no mesmo... até as supostamente isentas...)

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