...eu sentia falta de romance, não queria o marido, queria o namorado que existiu um dia...
a privação
São cinco dedos numa mão. Cinco na outra. A conta é a mesma para um pé. E para o outro. O mesmo número de unhas. Limar em quadrado, limar em ponta, cutículas para cortar. Enquanto isso, a minha cabeça só está aqui, ó, nos pensamentos. Uma pincelada de verniz daqui, um outro tom de vermelho dali, e eu sempre a pensar. Não pode dar coisa boa. Às vezes ainda aparece uma ou outra freguesa que gosta de conversar, e eu distraio-me um pouco, mas, se houver uma aberta, eu falo da porcaria de assunto que é o meu casamento. Ou melhor, o fim do meu casamento. Casamento que eu nem queria, acredita? Casar para quê? Namorados nunca me faltaram, apesar de eu não ser nenhuma beldade. Iiiihhhh… Eu fui uma desgraça, mesmo namoradeira, só vendo! Comecei com treze, e gostei que foi uma maravilha.
Aos dezasseis, já fazia sexo. Houve alturas em que cheguei a ter quatro namorados de uma vez! Aos dezassete, eu conheci o meu marido e gostei dele e pronto. Sempre gostei dele. Foram três anos de namoro seguidos, e depois ficámos num vai e volta, vai e volta. Numa dessas voltas, apareci grávida. Sabe o que é que ele fez? Foi-se embora! Chegou ao pé dos meus pais e disse que não estava a fugir, que precisava ir para o interior, que o padrasto estava doente e que ele precisava de o ajudar, e só reapareceu quando eu estava quase a explodir, de sete meses e meio. Por mim, nem olhava mais para aquela cara porque eu sou dura de roer. Sou mesmo. Mas chegou um dia em que pensei que era melhor amaciar esta dureza toda para não ficar de fora, e aceitei ir com ele a uma festa de aniversário. Saí de lá para a maternidade e, porque foi comigo, ele conheceu o bebé, senão eu acho que nem teria contado em que dia o meu filho nasceu. Eu já me sentia excluída da vida dele, sabe? Não queria obrigar ninguém a casar comigo por causa de uma criança. Eu desejava era ser querida.
Aceitei namorar de novo e só nos casámos quando o bebé já tinha dois anos. Às vezes eu comparo-me com a minha mãe. Sou mesmo como ela, que sempre foi quem trabalhou lá em casa. O meu pai bebia. Não até cair, mas bebia. Perdia o emprego, desaparecia de vez em quando, não arranjava trabalho e, quando chegava a casa, os dois discutiam como cão e gato. Foi a vida inteira assim, até que recentemente ele saiu, como todos os dias, só que não voltou. Morreu na rua. Pois não é que a minha mãe ficou doente por causa disso? Continua doente, e eu tomo conta dela. Também, pudera, viveram a vida toda juntos! Daquela maneira, mas viveram. Então é isso: é demasiada adrenalina, demasiada. Voltando ao meu marido, não o estou a comparar com o meu pai, isso não. Ele esforça-se muito, tem problemas financeiros gravíssimos, passou fome, chegou a vender latas de cerveja à porta de estádios e faz de tudo para conseguir alguma coisa. Chegámos a comprar um apartamento pequeno e a ter um carro.
Apartamento do CD HU. Sabe quais são? Daqueles da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado. Não é de classe média, percebe? É de classe baixa mesmo. Eu sou de classe baixa, mas não cheguei a morar numa favela. Agora, e sem querer discriminar, a gente que mora à nossa volta saiu, em grande parte, de favelas. E depois falta a educação, faltam modos, é feio dizer isto, mas é um horror! Eu queria que os meus filhos tivessem a hipótese de conhecer outras pessoas, queria seleccionar-lhes um pouco as coisas, queria que aprendessem outras coisas, mas, até agora, foi onde deu para comprar e ir vivendo. Dois filhos, porque eu tive uma menina sete anos depois do primeiro. Foi planeada. Veio numa fase boa da nossa vida, depois de uma porcaria de tempo em que tentei ir-me embora e voltei com o rabo entre as pernas. Descobri que tinha bagagem e que já não dava para ir morar com ninguém. Nem amigas, nem família. Tornei-me num estorvo com um filho. Pensando bem, os nossos principais problemas foram financeiros porque, para ser sincera, ele sempre manteve as aparências, tudo muito certinho. Ele precisava da imagem da família, dos filhinhos, da mulher e tudo o resto. Eu só queria que gostassem de mim. Acho que é por isso que ficava tão fula da vida quando comprava um presentinho para ele, eu que nunca me esqueci de uma data. Um relogiozinho, uma peça de roupa, uns sapatos giros, um sacrifício, e a retribuição vinha de uma loja de roupa em segunda mão, barato, barato, barato. E só retribuía para não me ver danada, não para me fazer feliz! Bolas, magoava-me. Isto é gostar? Isto é querer bem?
Nem era preciso isso da loja de roupa em segunda mão. Um bilhetinho que fosse, um papelinho, um recadinho num guardanapo era mais bonito que aquilo. Eu stressei muito quando a minha filha nasceu. Foi uma fase complicada do pós-parto. Ela irritava-me, exigia-me muito, a infeliz não parava de chorar, eu cansada, a querer ser agradada e não sendo, a viver de umas moedinhas que ele punha num copinho num armário da cozinha. Era disso que eu vivia, com mais um dinheiro supercontado para ir ao mercado, uma vez por mês. Se eu precisasse de um pouco mais para uma lixívia, um detergente, um champô, nem pensar! Era pãozinho, e chega! Eu vivia esgotada. Quando se é solteira, têm-se menos despesas em geral, compreende? Pode-se fazer a faculdade, ou um curso profissionalizante, por exemplo. Casada, só se pode cuidar dos filhos, do trabalho e ficar em casa, porque não dá para sair só por diversão. Se bem que hoje em dia o meu nome esteja no SPC (serviço de protecção ao crédito) porque fiquei com umas dívidas e não consegui pagar. Ainda. É um sacrifício que eu faço porque quero os meus filhos a fazer coisas boas, a ter algumas alegrias de viver para além da escolinha. Hoje eu sou uma mãe que ama demais. Quer saber sobre mim? O meu sonho era ser protésica. Fazer próteses. Eu queria ter tido esta profissão. Tinha vontade de ajudar a fazer um sorriso muito lindo, ia sentir muito orgulho nisso. Bem, voltando um pouco atrás, chegou o dia em que pus o meu marido fora de casa. Eu não sei se ele me traiu, não tenho a certeza. Só sei que não pude confiar mais nele. Imaginem que nesse dia ele me pediu para ir de carro para o trabalho, porque precisava de trazer uma colega que estava maldisposta. Fui buscar as crianças ao colégio e obedeci. E não é que ele me fez sentar lá atrás e deixar o banco da frente para a rapariga, a dizer que assim ninguém se amontoava em cima dela? E foi andando, assim, simplesmente, sem perguntar a morada dela nem nada. Eu é que perguntei com muita lata, sem olhar para a cara dela, se não seriam necessárias explicações sobre o caminho. Ela quieta, ele nada, e já a parar na porta certa. Cheguei à conclusão de que ele já tinha feito aquilo muitas vezes. E não era para desconfiar? Eu, uma ninguém, no banco de trás, humilhada.
Depois, já em casa, quando o questionei sobre o assunto, mandou-me pensar o que quisesse. Pensei. Entrei com um advogado. Por lei, consegui trinta por cento do salário dele todos os meses. Só que há dois que ele não aparece, nem paga. Ai, ficou borrado? Deixe lá, não tem importância, eu ponho acetona e pinto outra vez. E então, fiquei sozinha. No começo da separação, não o deixei ver as crianças. Depois de tudo acertado, nos dias de visita dava-me uma agitação estranha, quase de arrependimento, quando elas voltavam do passeio com o pai e me falavam da nova namorada. Por meu lado, tive um casozinho, dei uns beijos, fomos para a cama, mas não deu em nada. Eu acho que não sei o que é amor, honestamente. Isto que sinto pelo meu ex‑marido, parece‑me doença. Acredita que até hoje eu penso que só vou ficar livre de verdade quando parar de pensar que ele pode voltar? Uma pessoa a quem nos dedicámos dos dezassete aos trinta e três anos de idade e já não nos fala, não representamos mais nada para ela? Como é que pode ser? Sabe que depois de eu me separar comecei a revoltar-me até contra Deus? Já falei com Ele… Olha para aqui, eu sempre vim aqui a esta bosta desta igreja, orei, orei e orei, e olha no que a minha vida se tornou, nesta porcaria! Igreja onde fui parar por causa dele, que a minha era outra, diga-se de passagem. Olhei para Deus e perguntei: Como é que é? ahahah, eu já me consigo rir, ouviste? Por falar nisso, vou contar uma coisa ridícula: eu sempre desejei um momento a sós num aniversário de casamento, por exemplo. Um fim-de-semana na praia do Boqueirão, na praia Grande que fosse, uma noite num motel, mas só a dois. Eu sentia falta de romance, não queria o marido, queria o namorado que existiu um dia. Cheguei a comprar um daqueles vasinhos solitários, de pôr só uma florzinha, e mostrei-lhe dizendo «é só completares que já me fazes feliz.» Nada. Diga só se é possível, uma margarida, uma rosinha, um antúrio vermelho, qualquer flor… Ia ficar tão bonito. Desculpe, mas ainda choro quando penso nisso. Ah… sim… a parte engraçada. Uma vez, ele já trabalhava há cinco anos numa empresa, e nunca tinha tirado férias. Pois no dia em que tirou, foi operado às hemorróidas e eu passei os dias de descanso a abanar o rabo dele! Num outro ano, fomos visitar a minha sogra no interior (e eu preferia morrer a fazer essa visita), e, no outro a seguir, foi operado de novo às hemorróidas porque as malditas voltaram!
Acredita? Hoje em dia sinto-me setenta por cento melhor. Os trinta por cento são por conta deste medo de o ver de novo e ficar desnorteada. O ideal era que ele sumisse. Que morresse mesmo. Não por mim, pelas crianças. Não é menos traumático dizer não têm pai do que explicar que o pai desapareceu depois de, sei lá, há uns cinco anos? Porque ele me irrita. E quanto! Eu queria que ele desaparecesse! Sabia que eu arranjei um namorado no autocarro? No outro dia, naquele aperto na entrada, um passinho a mais, mais um, mais um, e ele ficou à minha frente, quase colado a mim. Então ele disse: «bolas, o trânsito hoje está uma desgraça», e eu, «é verdade, para fugir só indo para o interior», e ele «Deus me livre, eu vim de lá», e depois disse-me antes de descer: «apanhe o autocarro aqui amanhã para a gente conversar», e eu disse, «está bem». No dia seguinte, pus um batom e fui. Desencontrei-me do danado do rapaz, não houve hipótese. Depois veio uma semana com um feriado, não encontrei o tipo a semana inteira. Hoje, que vergonha, apanhei o autocarro, não estava cheio, sentei-me e adormeci. Ele estava lá atrás, viu-me e veio. Pôs a mão no meu ombro e acordei a olhar assustada, amarrotada, babada, sabe como é?! E ele começou e disse «na sexta, eu vim e tu não…», e eu «eu vim mas acho que a gente se desencontrou», depois ele disse «e quando é que a gente vai beber um sumo?». Chegou a paragem em que o safado descia, mas, antes, eu dei-lhe o meu número de telefone. Ele pediu-me e eu dei. Foi lindo o meu dia hoje. O meu marido não soube lidar com as minhas necessidades, aquele idiota. Eu só queria fazê-lo na cama de um motel, só nós dois, fazer uma coisa diferente de vez em quando, uma coisa diferente, entende? Eu, a melhor, a mais gostosa, a mais amada, a mais bonita, eu. Pronto, gosta? Quer óleo secante ou spray?
Marília Gabriela
in "Eu que amo tanto"
(por acaso, em Portugal a capa é verde, com um belo meio coração, da Editora Objectiva... mas não encontrei a imagem e vai a edição brasileira... às vezes pergunto-me qual a função de certos sites e não consigo encontrar resposta... é o caso do desta editora!!!)
Sem comentários:
Enviar um comentário