...não faço ideia de quem seja qualquer destes famosos, vivo de certeza noutro planeta...
BOM DIA!
Sento-me para escrever isto, são nove horas da manhã, e na janela aberta as árvores ao sol. As folhas brilham, movem-se dançaricando nos ramos, mais escuras, mais claras, trocando de lugar, voltando à posição inicial, trocando de novo. Um candeeiro ao sol também, com a enorme lâmpada apagada. À noite quase ninguém na rua, é gente séria, excepto a estrangeira sem abrigo, de carrapito esquisitíssimo e vários sacos de plástico nos braços, vestida como um arlequim enlouquecido, a abordar os carros no sinal vermelho. Dorme onde, a pobre? Num degrau, num portal, num vão de escada destes prédios velhos? Quase tudo é velho aqui, excepto a luz que parece areada por um esfregão de arame, intensa, dura. Trata-se de um lugar de reformados, de perninhas marotas, de lojecas modestas, pequenos negócios sem clientes. E, para espanto meu, quatro clínicas dentárias e cinco cabeleireiros: não deve existir um incisivo em nenhuma gengiva e as senhoras do bairro de madeixas pintadas. Reúnem-se na pastelaria em cima, diante de um café que dura a tarde inteira, a dissertarem as fotografias das revistas. Títulos: Conheça os lugares de férias dos famosos, A astróloga Não Sei Quantas declara que é mais ardente aos cinquenta do que aos vinte anos, o manequim Não Sei Quantos assume romance com conhecida empresária, afirmando que a sua relação com a organizadora de eventos Não Sei Quantas terminou de uma forma serena porque somos ambos pessoas civilizadas. Não faço ideia de quem seja qualquer destes famosos, vivo de certeza noutro planeta. Uma das senhoras de madeixas duvida da ardência da astróloga, a amiga contrapõe argumentos, quase se zangam. A estrangeira sem abrigo surge ao crepúsculo, a pedir esmola em alemão. Alemão ou holandês. Nunca vi tanta sujidade junta, benza-a Deus. Por mim não se interessa nada, só se preocupa com os automóveis nos semáforos: nenhum lhe dá esmola. Há quem suba o vidro e ela a bater com os dedinhos, inclinada para diante na atitude de quem espreita por um buraco de fechadura, enquanto os condutores rezam para que surja o verde. E ali fica, parada no meio da rua, de braços abertos enquanto os sacos oscilam. Se adoecer, se morrer, quem se importa? Nenhuma revista fala nela, ao passo que a astróloga de cinquenta anos exibe lingerie e pernas, feliz. Na televisão junto ao tecto uma famosa agitada entrevista famosos que deitam soslaios ao monitor a corrigirem a posição, preocupados. Suponho que discutem a segunda lei da termodinâmica ou as relações de Pascal com o jansenismo, porque as senhoras alongam o pescoço, fascinadas. A dona do quiosque, que no inverno cobre os jornais com plásticos, arruma a mercadoria, aferrolha aquilo tudo. Há magazines trancados em celofane com famosas nuas que namoram futebolistas. Admiro os futebolistas porque são homens de uma só palavra, isto é de uma só frase:
- Há que levantar a cabeça e pensar no próximo jogo
máxima que parece entusiasmar as famosas nuas, de cabeça bem levantada nos magazines, cobrindo um décimo do peito com as mãos abertas. A estrangeira sem abrigo não cobre peito nenhum, ocupada com os sacos, a murmurar sozinha. Se calhar pensa
- Há que levantar a cabeça e pensar no próximo sinal vermelho.
De tempos a tempos lá lhe entregam uma moeda que esconde logo sob os trapos, na velocidade com que as rãs engolem moscas. O que será feito do senhor Mário, que se alimentava de minis e tinha um gato chamado Baixinho que uma criatura qualquer lhe matou à vassourada? Passava fome para comprar fiambre para o Baixinho, mesmo em julho apoiava-se no guarda-chuva, que era a única bengala que tinha. Nunca o vi comer nada, falava resmungos incompreensíveis, vestia um blusão outrora branco o ano inteiro, os fundilhos das calças nadavam. Se entrasse na pastelaria enxotavam-no, nem sequer os pombos fugiam dele. O que será feito do vagabundo de barba comprida, ainda novo, que falava cinco línguas, a dançar sozinho nos passeios em gestos de bailarina oriental, todo dedos? Os meus famosos, esses, que não pensam no próximo jogo, acho que não pensam em nada. O senhor Mário não deitou uma lágrima pelo Baixinho, preferiu dobrar a quantidade de minis, uma floresta de gargalos no balcão. Oiço pela janela dois homens discutirem. Um deles adianta um argumento definitivo
- Eu trabalho, sabe?
o outro encrespa-se
- Está a chamar-me chulo?
o primeiro amansa um bocadinho
- Não estou a chamar nada, estou a dizer que trabalho
o segundo contemporiza
- E você julga que eu ando aí à boa vida?
e a seguir silêncio porque conseguiram um acordo honroso, ambos de cabeça levantada, a pensarem no próximo jogo. Só lhes faltam as namoradas nuas mas é impossível atravessar o celofane dos magazines com a unha e pescar a famosa da capa. São dez horas da manhã. As folhas continuam a brilhar. Decido pôr um ponto final nisto. Ponho. Aí está ele: .
António Lobo Antunes
(...não costumo fazer comentários à vida privada dos demais, mas parece que o ponto final, segundo os jornais, se extendeu a outros níveis... já estou a ver os próximos programas da tarde dedicados ao assunto...)
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