16 setembro 2009

...todas as noites sinto o castanho dos teus olhos grandes dissolvendo-se nos meus com uma felicidade quente, imensa...




Enquanto os nossos camaradas celebravam nas ruas, nós fabricávamos o amor a partir do zero, no deslumbramento silencioso de um deus que subitamente descobrisse as coisas de que era capaz. Amávamo-nos como se o amor fosse apenas um suplente íntimo dessa revolução que nunca mais chegava. A revolução já tinha chegado, mas nós não sabíamos. Só em Junho de 1974 se lembraram de nós, fechados naquela casa clandestina. Muitas vezes, ao longo da minha vida, desejei que nos tivessem esquecido ali para sempre. Desejo ingrato, infantil. Tive uma vida boa. Consegui ser a advogada que queria ser, cobrar bem aos ricos para defender melhor os pobres. Encontrei um homem que entende o amor como partilha absoluta - nunca senti o peso do trabalho doméstico ou da educação dos filhos. Tive dois filhos que só me trouxeram alegria e serenidade, e tenho já um neto que parece um reclame sobre o brilho da vida. E tive-te, atrás do espelho, todas as manhãs da minha vida. Porque foi sempre para ti que me quis bonita, mesmo nos dias escuros. É em ti que penso, quando escolho a roupa ou escovo o cabelo, todos os dias. Na possibilidade de te encontrar, no acaso de uma esquina. Lisboa é tão grande e tão pequena - porque não havia de te encontrar? Queria ser a mesma, nesse encontro. A mesma, com a luz das rugas que me faltavam no tempo em que nos metíamos por dentro do corpo um do outro como se sozinhos fôssemos apenas pedaços de um corpo mutilado.

Adormeci todas as noites da minha vida nos teus ombros estreitos de adolescente eterno. Nunca foste bonito, mas possuías um não-sei-quê de juventude ancorada que te tornava imediatamente comovente. Usavas e abusavas desse não-sei-quê. Não acreditavas em nada, vivias num aquário de sonhos impossíveis que fazia de ti um anjo negro, abismo de lágrimas congeladas. Eras ardiloso, sorrateiro e impaciente como as crianças; cruzaste-te comigo duas vezes em reuniões de célula e pouco depois fechavam-nos juntos naquela casa clandestina. Nem sob tortura confessarias que tinhas movido os teus cordelinhos para ires viver comigo. Entre o segundo encontro e a nossa definitiva "coincidência no mesmo espaço", como diria a Madalena, perita em justificações espaciais, o teu íntimo amigo António descaíra-se, numa noite de copos. Ralhou-me por causa do meu namorado imberbe e pequeno-burguês e revelou-me que tu me achavas linda e lastimavas que eu nem sequer olhasse para ti. Esta curta e embriagada confissão em diferido mudou a minha vida. Provavelmente encomendaste-a, nunca o cheguei a saber. Quando, há meia dúzia de anos, fui ver o António ao hospital, encontrei-o tão próximo da morte que já não tive coragem de esclarecer os bastidores desta frase minúscula que mudou a minha vida inteira. Não quis que o António percebesse que era ainda para o ouvir falar de ti que precisava dele.

Depois de sairmos de casa, deixaste de me procurar. Creio que te fazias encontrado comigo, mas como eu também me fazia encontrada contigo, nunca cheguei a ter a certeza de que, de facto, me procuravas. Repetir-me-ias muitas e muitas vezes que não eras talhado para a vida conjugal. "Mas nós já vivemos juntos", disse-te eu, uma vez, desesperada. Sorriste, e era um sorriso tão meigo quando sarcástico - ou pelo menos assim me lembro dele: "Só por necessidades imperiosas da revolução". De outra vez disseste-me que, na vida real, eu não aguentaria uma semana contigo. Ou talvez eu tenha inventado que tu me disseste isto. Pouco importa. Posso ter inventado tudo, menos o fulgor perfeito dos nossos corpos juntos. Uma vida inteira não basta para apagar da pele o peso magnífico desse folgor. Só sexo, disseram-me as amigas íntimas, quando eu ainda chorava com elas a saudade do êxtase. Só sexo, fogo e palha, talvez tenham razão. Mas é disso que trata a vida, a minha vida: só sexo. Contigo. O prazer que o meu corpo conhece é o que aprendeu no teu, e foi esse que o meu corpo ensinou aos outros homens, aos vários em que tentou enganar a tua ausência, ao único que soube contornar a tua ausência para permanecer em mim.

Todas as noites me acaricio com os teus dedos, fecho os olhos e sugo os teus dedos sob o contorno dos meus e conduzo-te pelo meu corpo como tu me conduzias. Todas as noites rebolamos da cama para o chão e do chão para cima da cómoda do teu quarto e para a mesa da sala e para as lajes frias da cozinha, todas as noites percorremos abraçados a casa velha onde já não moras, a casa velha que se calhar já se desmoronou sem a nossa ajuda. Todas as noites tu entras em mim por todas as portas, a tua língua silenciosa desperta vertigens desconhecidas nas partes secretas das minhas orelhas e das minhas pernas e dos meus pés. Todas as noites sinto o castanho dos teus olhos grandes dissolvendo-se nos meus com uma felicidade quente, imensa, vejo os teus quadris estreitos de rapaz dançando sobre o redondo do meu ventre, das minhas nádegas, todas as noites os teus dentes mordem o meu pescoço no sítio exacto em que o meu corpo guardava a última fechadura, todas as noites volto a subir a esse monte dos vendavais só nosso. Só sexo, seja.

Tantas vezes te pedi: "Diz-me que me amas, diz só uma vez. Mesmo que seja mentira. Diz-me. Só para eu guardar o som da tua voz a dizer essa palavra". Tinha vinte e três anos, e tu tinhas vinte e nove. Depois dos trinta, deixei de te fazer declarações de amor. Julgava-me madura, ardilosa - pensava que bastava prescindir das palavras para não te perder. Mas não eram as minhas palavras que te perdiam. Tu eras um pintor e já não ias ser pintor. Só com o tempo foste lendo o resto, o resto dos restos que era tudo: que eu sabia que tu eras pintor. O artista do meu corpo secreto, uivante, um tecido de fios de luz que só os teus dedos acendiam, e rios, rochas, relvados amaciados pela tua lingua, uma asa à medida do teu voo, uma casa em que tu moravas de todas as maneiras. Falavas pouco, quase nada, por isso me lembro tanto das tuas palavras todas: "Este apartamento já conheço, podemos passar ao outro?", perguntaste. Se eu contasse às minhas amigas que as tuas palavras eram estas, apenas estas, sussuradas com um sorriso trocista de timidez, elas fariam troça de mim. De nós. Por isso contei apenas o essencial: que tu me fazias sentir bela. Que conseguiste que eu me sentisse bela a vida inteira. De cada vez que o espelho me anunciava mais uma marca do tempo, mais uma prega na carne, eu acariciava-a com os teus dedos, sentindo o prazer que tu sentirias, ao descobrires novas rotas no mapa do meu corpo. No início, dizias-me também às vezes: "És tão nova". Não era um elogio; havia um tom de decepção ou desencontro nesse teu comentário. E eu tinha pressa de encarquilhar, de envelhecer até ficar parecida com as mulheres que amaras antes de mim. Nunca me elogiaste. Encontrávamo-nos por causa do Partido, levavas-me para tua casa, com os pretextos mais nevoentos - um debate político na televisão, o ofício que ias entregar ao Ministério -, e quando fechavas a porta começavas a beijar-me. As pálpebras, o lóbulo da orelha, a curva do pescoço ou o espaço entre os dedos. Só sexo. Nunca começavas como nos filmes. Também nunca perguntaste essas patetices deprimentes que as pessoas copiam dos filmes: "Foi bom?".

Saí do consultório e pensei que tinha de te encontrar. Não sabia como. Há pelo menos vinte anos que não tenho o teu telefone. Um dia desisti de ti. Tive medo de deixar de fazer parte do mundo, de continuar sozinha contigo, só sexo. Conheci um homem que seria indigno trair, um homem que me seduziu porque era o oposto de ti. E decidi ser feliz. Sei vagamente onde moras, ou onde moravas, há cerca de cinco anos cruzei-me com a tua mulher numa festa e percebi que ela dizia: "desde o meu divórcio". Claro que podia estar a falar do seu primeiro casamento. Mas como mudou de assunto assim que me viu, pareceu-me que só podia estar a falar de ti. Nunca fomos apresentadas, eu e a tua mulher, ou ex-mulher. Mas eu sei que ela sabe muito de mim. Os olhos da mulher de um homem que nos ama são indiscretos. Também nos olhos dela encontrei o teu amor por mim. Amor não é a palavra exacta. Amor é o que eu sinto pelos meus netos, pelos meus filhos, pelo pai deles, até pelo meu cão. Pobre cão. Se calhar vai deixar de comer quando eu morrer. Vai ficar sentado à porta, esperando por mim até à morte. Os cães não conhecem a morte, por isso podem morrer de amor. Ficam à espera até ao fim, não se deixam consolar.

Tu tens alma de cão vadio, sabes amar sem desconsolo. Se fosses morrer daqui a um mês ou dois, como eu, saberias fazer-te encontrado comigo? Talvez soubesses. Da última vez que te vi - há nove anos, no cinema - aproximei-me para te pedir um cigarro e disse-te, mesmo antes de ti: "Que disparate. Deixaste de fumar há uma semana, bem sei, desculpa". Como é que sabes?" - perguntaste-me, atónito. Sorri, encolhi os ombros, não cheguei a responder-te. Como é que eu sabia? - Ora, como sei tudo de ti. Através dos sonhos. Agora sento-me no café em frente do Ministério, à espera que tu saias e venhas ter comigo. O Ministério mudou de nome, mas de certeza que tu ainda lá trabalhas. Sempre foste um homem de hábitos e nunca cultivaste grandes ambições. Peço uma bica e começo a fazer contas. Oxalá a tua ambição tenha sido pelo menos suficiente para te afastar da pré-reforma. Também não te imagino em casa, a fazer palavras cruzadas o dia inteiro. Do Partido desististe muito antes da moda da renovação.


Cinco e trinta e cinco. Lá vens tu, de pasta na mão, com o mesmo andar sorrateiro, falsamente tímido, de rapaz antigo. Entras no café. Levanto-me. Os teus olhos crescem e iluminam-se para me ver. Acaricias-me o cabelo, e dizes: "Tens outra vez o cabelo muito comprido". Isto é um elogio. Nem tu sabes ainda como me vai ser útil esse teu elogio, nos meses que faltam. Comprarei um cabelo igual para tu veres. Neste, ainda o meu, quero que mexas. Prendo-te a mão ao meu cabelo. Falamos de coisas soltas, bebes uma cerveja, prometes uma vez mais que um dia me ensinarás a gostar de cerveja. Depois pegas na pasta e perguntas se por acaso não quero ir até lá a casa ver umas fotografias dos tempos antigos. Fechas a porta e começas a beijar-me, primeiro os olhos, depois o lóbulo da orelha, depois o pescoço, enquanto os teus dedos me abrem a camisa e me procuram os seios. Beijamo-nos de olhos abertos, como sempre, e é de olhos abertos que procuro cada uma das novidades do teu corpo, os sítios onde a tua pele se dobra, o cheiro agora mais adocicado do teu sexo. Entramos um no outro de olhos abertos, como se mergulhássemos num mar de silêncio e fogo escuro. A meio da noite peço-te que me deixes ficar contigo um mês - "só um mês, prometo. Posso?" Não me respondes, claro. A não ser que os beijos sejam uma resposta, e eu preciso de acreditar que sim. Preciso dessa vida verdadeira que escondi debaixo da tua pele, antes que o cabelo me caia, antes que comecem os enjoos e as dores, antes que o meu corpo seja tomado pelo cheiro miserável da doença. Talvez para morrer eu precise do amor e da família. Mas para acabar de viver, só preciso de ti, desta febre azul a que os outros chamam só sexo.



Inês Pedrosa
"Só sexo", in "INTIMIDADES. ANTOLOGIA DE CONTOS ERÓTICOS FEMININOS".

1 comentário:

Mafalda disse...

adorei...
Talvez para morrer eu precise do amor e da família. Mas para acabar de viver, só preciso de ti, desta febre azul a que os outros chamam só sexo. esta frase é mto forte, gostei mto : )

beijinho