...quantos dias demorarei a esquecer o teu rosto...
5. Quantos dias demorarei a esquecer o teu rosto?
Lembro-te a cada minuto. Parcela a parcela, para não te perder. Para me perder inteiro nesse objecto móvel que tu foste. Os olhos negros, escavados, sempre olheirentos. As tais sobrancelhas Kahlo. O nariz adunco que te fazia fugir dos retratos de peról. O sinal no pescoço alto, à direita. Os braços ossudos, compridos. As mãos quadradas,como as unhas, sempre cortadas rente. Sem verniz. Ainda e sempre uma questão de princípio; o verniz das unhas era mais um símbolo veemente da submissão das mulheres aos homens, se mais não fosse, pelo tempo que é necessário investir nessa actividade. Eu concordava contigo, mas por razões estéticas: garras coloridas e afiadas remetiam-me para costumes bárbaros, odores de bairro da lata, rituais primitivos. A graça dos teus cotovelos pontiagudos espetados na mesa, as mãos rasgando a noite mais depressa do que as palavras. A boca grande, com uma fila imensa de dentes irregulares sempre a postos para a próxima gargalhada.
Uma vez procuraste-me, numa vernissage qualquer, com os olhos afogados em lágrimas, porque uma qualquer marquesa ou assimilada te tinha dito, com um sorriso benfeitor que conhecia um óptimo dentista a que te aconselhava que fosses para resolveres o teu problema com os dentes. Responderas-Lhe, evidentemente, que não tinhas qualquer problema e que os dentes tortos faziam parte do teu encanto particular, ao que a marquesa retorquira, com um esgar em dó menor, que ainda bem que há pessoas felizes de serem como são. Contaste-me tudo isto de rajada, ao ouvido, numa voz trémula que me indignou.
Dei-te o braço, dirigimo-nos à dama, osculei-Lhe a pata com olhos de encornador e depois recitei-Lhe: "Não leve a mal, mas hoje já há tratamento para essas manchas tão desagradáveis que surgem nas mãos com a idade. Terei todo o gosto em indicar-Lhe um excelente dermatologista, que faz autênticos milagres." Não o fiz só por ti, miúda. Experimentava um prazer maligno em desmoronar este género de bichos; a passagem instantânea do deslumbramento ao horror desfigurava-os, revelando-Lhes a caveira escamosa de crocodilos interplanetários. Tornámo-nos profissionais deste jogo da verdade, para o qual recolhêramos inspiração no They Live do John Carpenter, um dos muitos filmes que nos caçaram juntos.
A princípio, declaravas que se tratava de uma obra menor, tão simpática quanto primária. Mas à medida que te alagavas na estrumeira da política, apanhavas o rigor exacto da fita. De facto, eles vivem, e só com uns especialíssimos óculos escuros alguns de nós conseguem vê-los. Outros, como tu, tentam mesmo eliminá-los, para que o mundo seja esse lugar humano que ainda não chegou a ser. O problema, queridíssima, é que os que mais tentam parecem destinados a finar-se num fósforo.
O raio do teu Deus, se existe, é muito mais pérfido que nós os dois juntos. Desde que tu lerpaste, só consigo ver crocodilos. E tens razão: eles vestem fatos Hugo Boss, camisas Ralph Lauren. Concedo: até lenços de seda italiana, como eu. A identificação pelo aparato, brincavas tu. Como nos povos primitivos, afirmativo. Mas não seremos todos, mesmo os que o sabem, seres tribais, regidos pelo princípio de participação?
Que lógica há neste discorrer caótico que me liga a ti, que me faz procurar-te no verde cruel desta Primavera falsa?
Não acredito em deuses nem em demónios. Todavia registo os teus sinais, tranco-me na solidão para te escutar. Quero a luz escura dos sonhos contagiados/ As sobras das almas que inventámos/ O coração ardido dos antigos namorados/ As histórias que afinal não contámos. A voz do teu amigo Pascoal, um dos sortudos que te encantaram antes de mim.
Ontem tive a nítida impressão de que me pedias que te fizesse ouvir uma série de cançonetas daquelas de que tu gostavas.
Estranhamente, obedeci-te - eu, que abomino essa corruptela a que chamam música ligeira. Dizias que, se a música fosse uma grande arte, haveria um cortejo de compositoras. Mas não há uma só mulher entre os grandes compositores. Em contrapartida, todos os ditadores são melómanos. Para ti, estas eram as provas irrefutáveis de que a música era apenas uma artezita corriqueira. Curiosamente, desculpa a observação, os teus cançonetistas também são quase todos homens, minha querida.
Pior do que isso; homens comoventes.
Inês Pedrosa
in "Fazes-me Falta"
...porque há dias em que ligamos o computador e alguns velhos fantasmas despertam... será que alguma vez estiveram adormecidos??
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