...para quem esteja na disposição de ver, há museus em toda a parte, tudo pode ser um museu...
BENS DE CONSUMO
Sob as luzes demasiado brancas dos supermercados, aprendem-se grandes lições. Só raramente os roteiros turísticos incluem visitas a supermercados, ainda assim, há muita informação que não se encontra em monumentos. Para o visitante interessado e atento, os supermercados são retratos da economia, da gastronomia, de inúmeras faces da cultura real, da identidade de um país.

Nos anos oitenta, eu ia à mercearia. Com o dinheiro trocado, notas e moedas, pedia o que levava escrito num papel. O balcão tinha um tampo de mármore e chegava-me à altura do peito. Enquanto a senhora Dalila procurava o que lhe pedia, eu ficava a olhar para os brinquedos que estavam expostos, se fosse perto do Natal, havia comboios a pilhas e guarda-chuvas de chocolate; havia fotografias de gelados nos meses do verão. Não era habitual que a conta incluísse essas extravagâncias, mas olhar para elas também tinha valor, também me alimentava o desejo.
Depois, quando chegaram os hipermercados a Portugal, a minha família e eu surpreendíamo-nos com os preços de tudo, as promoções eram loucas e enlouqueciam-nos. Ao longo de corredores, eu empurrava carros com pilhas de detergente para a roupa, tínhamos de aproveitar a viagem. No parque de estacionamento, só o meu pai, com grande arte, conseguia encontrar espaço no porta-bagagens para todas as compras que fazíamos a pensar no mês seguinte, pelo menos. Voltávamos para casa com as vozes dos altifalantes a ecoarem-nos na cabeça, alguém precisava de ir à caixa número não-sei-quantos, alguém precisava de ir com muita urgência e repetidamente à caixa número não-sei-quantos.
Hoje é tudo igual? Não concordo. Uma Coca-Cola com o rótulo em alfabeto cirílico, mandarim, árabe ou hindi tem muita diferença de uma Coca-Cola com o rótulo em inglês, Coke comprada numa loja de conveniência em Manhattan. Mesmo que a composição seja exatamente a mesma, o sabor será tão distinto como o cenário, o preço ou a história que essa bebida possui naquele lugar, o que representa ali.
Para quem esteja na disposição de ver, há museus em toda a parte, tudo pode ser um museu.
Pasta medicinal Couto, a minha mãe ainda prefere essa marca. Atualmente, dá-se a grandes trabalhos para achá-la, mas vale sempre a pena.
Sentiremos saudades de muitas coisas que hoje parecem banais. Nada é suficientemente industrializado ou massificado a ponto de não poder ser recordado com nostalgia. Essa saudade somos nós, é o próprio tempo.
por José Luís Peixoto, in Revista UP
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