...às vezes, entre tantos sonhos, infiltra-se algum que não tem nada a ver com a vida real...
Me alugo para sonhar
Às nove, enquanto tomávamos o café da manhã no terraço do Habana
Riviera, um tremendo golpe de mar em pleno sol levantou vários
automóveis que passavam pela avenida à beira-mar, ou que estavam
estacionados na calçada, e um deles ficou incrustado num flanco do
hotel. Foi como uma explosão de dinamite que semeou pânico nos vinte
andares do edifício e fez virar pó a vidraça do vestíbulo. Os
numerosos turistas que se encontravam na sala de espera foram lançados
pelos ares junto com os móveis, e alguns ficaram feridos pelo granizo
de vidro. Deve ter sido uma vassourada colossal do mar, pois entre a
muralha da avenida à beira-mar e o hotel há uma ampla avenida de ida
e volta, de maneira que a onda saltou por cima dela e ainda teve força
suficiente para esmigalhar a vidraça.
Os alegres voluntários cubanos, com a ajuda dos bombeiros, recolheram
os destroços em menos de seis horas, trancaram a porta que dava para o
mar e habilitaram outra, e tudo tornou a ficar em ordem. Pela manhã,
ninguém ainda havia cuidado do automóvel pregado no muro, pois
pensava-se que era um dos estacionados na calçada. Mas quando o
reboque tirou-o da parede descobriram o cadáver de uma mulher preso no
assento do motorista pelo cinto de segurança. O golpe foi tão brutal
que não sobrou nenhum osso inteiro. Tinha o rosto desfigurado, os
sapatos descosturados e a roupa em farrapos, e um anel de ouro em forma
de serpente com olhos de esmeraldas. A polícia afirmou que era a
governanta dos novos embaixadores de Portugal. Assim era: tinha chegado
com eles a Havana quinze dias antes, e havia saído naquela manhã para
fazer compras dirigindo um automóvel novo. Seu nome não me disse nada
quando li a notícia nos jornais, mas fiquei intrigado por causa do
anel em forma de serpente e com olhos de esmeraldas. Não consegui
saber, porém, em que dedo o usava.
Era um detalhe decisivo, porque temi que fosse uma mulher inesquecível
cujo verdadeiro nome não soube jamais, que usava um anel igual no
indicador direito, o que era mais insólito ainda naquele tempo. Eu a
havia conhecido 34 anos antes em Viena, comendo salsichas com batatas
cozidas e bebendo cerveja de barril numa taberna de estudantes latinos.
Eu havia chegado de Roma naquela manhã, e ainda recordo minha
impressão imediata por seu imenso peito de soprano, suas lânguidas
caudas de raposa na gola do casaco e aquele anel egípcio em forma de
serpente. Achei que era a única austríaca ao longo daquela mesona de
madeira, pelo castelhano primário que falava sem respirar com sotaque
de bazar de quinquilharia. Mas não, havia nascido na Colômbia e tinha
ido para a Áustria entre as duas guerras, quase menina, estudar
música e canto. Naquele momento andava pelos trinta anos mal vividos,
pois nunca deve ter sido bela e havia começado a envelhecer antes do
tempo. Em compensação, era um ser humano encantador. E também um dos
mais temíveis.
Viena ainda era uma antiga cidade imperial, cuja posição geográfica
entre os dois mundos irreconciliáveis deixados pela Segunda Guerra
Mundial havia terminado de convertê-la num paraíso do mercado negro e
da espionagem mundial. Eu não teria conseguido imaginar um ambiente
mais adequado para aquela compatriota fugitiva que continuava comendo
na taberna de estudantes da esquina por pura fidelidade às suas
origens, pois tinha recursos de sobra para comprá-la à vista, com
clientela e tudo. Nunca disse o seu verdadeiro nome, pois sempre a
conhecemos com o trava-língua germânico que os estudantes latinos de
Viena inventaram para ela: Frau Frida. Eu tinha acabado de ser
apresentado a ela quando cometi a impertinência feliz de perguntar
como havia feito para implantar-se de tal modo naquele mundo tão
distante e diferente de seus penhascos de ventos do Quindío, e ela me
respondeu de chofre:
- Eu me alugo para sonhar.
Na realidade, era seu único ofício. Havia sido a terceira dos onze
filhos de um próspero comerciante da antiga Caldas, e desde que
aprendeu a falar instalou na casa o bom costume de contar os sonhos em
jejum, que é a hora em que se conservam mais puras suas virtudes
premonitórias. Aos sete anos sonhou que um de seus irmãos era
arrastado por uma correnteza. A mãe, por pura superstição religiosa,
proibiu o menino de fazer aquilo que ele mais gostava, tomar banho no
riacho. Mas Frau Frida já tinha um sistema próprio de vaticínios.
- O que esse sonho significa - disse - não é que ele vai se
afogar, mas que não deve comer doces.
A interpretação parecia uma infâmia, quando era relacionada a um
menino de cinco anos que não podia viver sem suas guloseimas
dominicais. A mãe, já convencida das virtudes adivinhatórias da
filha, fez a advertência ser respeitada com mão de ferro. Mas ao seu
primeiro descuido o menino engasgou com uma bolinha de caramelo que
comia escondido, e não foi possível salvá-lo.
Frau Frida não havia pensado que aquela faculdade pudesse ser um
ofício, até que a vida agarrou-a pelo pescoço nos cruéis invernos
de Viena. Então, bateu para pedir emprego na primeira casa onde achou
que viveria com prazer, e quando lhe perguntaram o que sabia fazer, ela
disse apenas a verdade: "Sonho". Só precisou de uma breve explicação
à dona da casa para ser aceita, com um salário que dava para as
despesas miúdas, mas com um bom quarto e três refeições por dia.
Principalmente o café da manhã, que era o momento em que a família
sentava-se para conhecer o destino imediato de cada um de seus membros:
o pai, que era um financista refinado; a mãe, uma mulher alegre e
apaixonada por música romântica de câmara9 e duas crianças de onze
e nove anos. Todos eram religiosos, e portanto propensos às
superstições arcaicas, e receberam maravilhados Frau Frida com o
compromisso único de decifrar o destino diário da família através
dos sonhos.
Fez isso bem e por muito tempo, principalmente nos anos da guerra,
quando a realidade foi mais sinistra que os pesadelos. Só ela podia
decidir na hora do café da manhã o que cada um deveria fazer naquele
dia, e como deveria fazê-lo, até que seus prognósticos acabaram
sendo a única autoridade na casa. Seu domínio sobre a família foi
absoluto: até mesmo o suspiro mais tênue dependia da sua ordem.
Naqueles dias em que estive em Viena o dono da casa havia acabado de
morrer, e tivera a elegância de legar a ela uma parte de suas rendas,
com a única condição de que continuasse sonhando para a família
até o fim de seus sonhos.
Fiquei em Viena mais de um mês, compartilhando os apertos dos
estudantes, enquanto esperava um dinheiro que não chegou nunca. As
visitas imprevistas e generosas de Frau Frida na taberna eram então
como festas em nosso regime de penúrias. Numa daquelas noites, na
euforia da cerveja, sussurrou ao meu ouvido com uma convicção que
não permitia nenhuma perda de tempo.
- Vim só para te dizer que ontem à noite sonhei com você - disse
ela. - Você tem que ir embora já e não voltar a Viena nos
próximos cinco anos.
Sua convicção era tão real que naquela mesma noite ela me embarcou
no último trem para Roma. Eu fiquei tão sugestionado que desde então
me considerei sobrevivente de um desastre que nunca conheci. Ainda não
voltei a Viena.
Antes do desastre de Havana havia visto Frau Frida em Barcelona, de
maneira tão inesperada e casual que me pareceu misteriosa. Foi no dia
em que Pablo Neruda pisou terra espanhola pela primeira vez desde a
Guerra Civil, na escala de uma lenta viagem pelo mar até Valparaíso.
Passou conosco uma manhã de caça nas livrarias de livros usados, e na
Porter comprou um livro antigo, desencadernado e murcho, pelo qual
pagou o que seria seu salário de dois meses no consulado de Rangum.
Movia-se através das pessoas como um elefante inválido, com um
interesse infantil pelo mecanismo interno de cada coisa, pois o mundo
parecia, para ele, um imenso brinquedo de corda com o qual se inventava
a vida.
Não conheci ninguém mais parecido à idéia que a gente tem de um
papa renascentista: glutão e refinado. Mesmo contra a sua vontade,
sempre presidia a mesa. Matilde, sua esposa, punha nele um babador que
mais parecia de barbearia que de restaurante, mas era a única maneira
de impedir que se banhasse nos molhos. Aquele dia, no Carvalleiras foi
exemplar. Comeu três lagostas inteiras, esquartejando-as com mestria
de cirurgião, e ao mesmo tempo devorava com os olhos os pratos de
todos, e ia provando um pouco de cada um, com um deleite que contagiava
o desejo de comer: as amêijoas da Galícia, os perceves do
Cantábrico, os lagostins de Alicante, as espardenyas da Costa Brava.
Enquanto isso, como os franceses, só falava de outras delícias da
cozinha, e em especial dos mariscos pré-históricos do Chile que
levava no coração. De repente parou de comer, afinou suas antenas de
siri, e me disse em voz muito baixa:
- Tem alguém atrás de mim que não pára de me olhar.
Espiei por cima de seu ombro, e era verdade. Às suas costas, três
mesas atrás, uma mulher impávida com um antiquado chapéu de feltro e
um cachecol roxo, mastigava devagar com os olhos fixos nele. Eu a
reconheci no ato. Estava envelhecida e gorda, mas era ela, com o anel
de serpente no dedo indicador.
Viajava de Nápoles no mesmo barco que o casal Neruda, mas não tinham
se visto a bordo. Convidamos para mulher a tomar café em nossa mesa, e
a induzi a falar de seus sonhos para surpreender o poeta. Ele não deu
confiança, pois insistiu desde o princípio que não acreditava em
adivinhações de sonhos.
- Só a poesia é clarividente - disse.
Depois do almoço, no inevitável passeio pelas Ramblas, fiquei para
trás de propósito, com Frau Frida, para poder refrescar nossas
lembranças sem ouvidos alheios. Ela me contou que havia vendido suas
propriedades na Áustria, e vivia aposentada no Porto, Portugal, numa
casa que descreveu como sendo um castelo falso sobre uma colina de onde
se via todo o oceano até as Américas. Mesmo sem que ela tenha dito,
em sua conversa ficava claro que de sonho em sonho havia terminado por
se apoderar da fortuna de seus inefáveis patrões de Viena. Não me
impressionou, porém, pois sempre havia pensado que seus sonhos não
eram nada além de uma artimanha para viver. E disse isso a ela.
Frau Frida soltou uma gargalhada irresistível. "Você continua o
atrevido de sempre", disse. E não falou mais, porque o resto do grupo
havia parado para esperar que Neruda acabasse de conversar em gíria
chilena com os papagaios da Rambla dos Pássaros. Quando retomamos a
conversa, Frau Frida havia mudado de assunto.
- Aliás - disse ela -, você já pode voltar para Viena.
Só então percebi que treze anos haviam transcorrido desde que nos
conhecemos.
- Mesmo que seus sonhos sejam falsos, jamais voltarei - disse a
ela. - Por via das dúvidas.
Às três, nos separamos dela para acompanhar Neruda à sua sesta
sagrada. Foi feita em nossa casa, depois de uns preparativos solenes
que de certa forma recordavam a cerimônia do chá no Japão. Era
preciso abrir umas janelas e fechar outras para que houvesse o grau de
calor exato e uma certa classe de luz em certa direção, e um
silêncio absoluto. Neruda dormiu no ato, e despertou dez minutos
depois, como as crianças, quando menos esperávamos. Apareceu na sala
restaurado e com o monograma do travesseiro impresso na face.
- Sonhei com essa mulher que sonha - disse.
Matilde quis que ele contasse o sonho.
- Sonhei que ela estava sonhando comigo disse ele.
- Isso é coisa de Borges - comentei.
Ele me olhou desencantado.
- Está escrito?
- Se não estiver, ele vai escrever algum dia - respondi. - Será
um de seus labirintos.
Assim que subiu a bordo, às seis da tarde, Neruda despediu-se de nós,
sentou-se em uma mesa afastada, e começou a escrever versos fluidos
com a caneta de tinta verde com que desenhava flores e peixes e
pássaros nas dedicatórias de seus livros. À primeira advertência do
navio buscamos Frau Frida, e enfim a encontramos no convés de turistas
quando já íamos embora sem nos despedir. Também ela acabava de
despertar da sesta.
- Sonhei com o poeta - nos disse.
Assombrado, pedi que me contasse o sonho.
- Sonhei que ele estava sonhando comigo disse, e minha cara de
assombro a espantou.
- O que você quer? Às vezes, entre tantos sonhos, infiltra-se algum
que não tem nada a ver com a vida real.
Não tornei a vê-la nem a me perguntar por ela até que soube do anel
em forma de cobra da mulher que morreu no naufrágio do Hotel Riviera.
Portanto não resisti à tentação de fazer algumas perguntas ao
embaixador português quando coincidimos, meses depois, em uma
recepção diplomática. O embaixador me falou dela com um grande
entusiasmo e uma enorme admiração. "O senhor não imagina como ela
era extraordinária", me disse. "O senhor não resistiria à tentação
de escrever um conto sobre ela". E prosseguiu no mesmo tom, com
detalhes surpreendentes, mas sem uma pista que me permitisse uma
conclusão final.
- Em termos concretos - perguntei no fim -, o que ela fazia?
- Nada - respondeu ele, com certo desencanto. - Sonhava."
Gabriel Garcia Marquéz
(in "Doze contos peregrinos")
Às nove, enquanto tomávamos o café da manhã no terraço do Habana
Riviera, um tremendo golpe de mar em pleno sol levantou vários
automóveis que passavam pela avenida à beira-mar, ou que estavam
estacionados na calçada, e um deles ficou incrustado num flanco do
hotel. Foi como uma explosão de dinamite que semeou pânico nos vinte
andares do edifício e fez virar pó a vidraça do vestíbulo. Os
numerosos turistas que se encontravam na sala de espera foram lançados
pelos ares junto com os móveis, e alguns ficaram feridos pelo granizo
de vidro. Deve ter sido uma vassourada colossal do mar, pois entre a
muralha da avenida à beira-mar e o hotel há uma ampla avenida de ida
e volta, de maneira que a onda saltou por cima dela e ainda teve força
suficiente para esmigalhar a vidraça.
Os alegres voluntários cubanos, com a ajuda dos bombeiros, recolheram
os destroços em menos de seis horas, trancaram a porta que dava para o
mar e habilitaram outra, e tudo tornou a ficar em ordem. Pela manhã,
ninguém ainda havia cuidado do automóvel pregado no muro, pois
pensava-se que era um dos estacionados na calçada. Mas quando o
reboque tirou-o da parede descobriram o cadáver de uma mulher preso no
assento do motorista pelo cinto de segurança. O golpe foi tão brutal
que não sobrou nenhum osso inteiro. Tinha o rosto desfigurado, os
sapatos descosturados e a roupa em farrapos, e um anel de ouro em forma
de serpente com olhos de esmeraldas. A polícia afirmou que era a
governanta dos novos embaixadores de Portugal. Assim era: tinha chegado
com eles a Havana quinze dias antes, e havia saído naquela manhã para
fazer compras dirigindo um automóvel novo. Seu nome não me disse nada
quando li a notícia nos jornais, mas fiquei intrigado por causa do
anel em forma de serpente e com olhos de esmeraldas. Não consegui
saber, porém, em que dedo o usava.
Era um detalhe decisivo, porque temi que fosse uma mulher inesquecível
cujo verdadeiro nome não soube jamais, que usava um anel igual no
indicador direito, o que era mais insólito ainda naquele tempo. Eu a
havia conhecido 34 anos antes em Viena, comendo salsichas com batatas
cozidas e bebendo cerveja de barril numa taberna de estudantes latinos.
Eu havia chegado de Roma naquela manhã, e ainda recordo minha
impressão imediata por seu imenso peito de soprano, suas lânguidas
caudas de raposa na gola do casaco e aquele anel egípcio em forma de
serpente. Achei que era a única austríaca ao longo daquela mesona de
madeira, pelo castelhano primário que falava sem respirar com sotaque
de bazar de quinquilharia. Mas não, havia nascido na Colômbia e tinha
ido para a Áustria entre as duas guerras, quase menina, estudar
música e canto. Naquele momento andava pelos trinta anos mal vividos,
pois nunca deve ter sido bela e havia começado a envelhecer antes do
tempo. Em compensação, era um ser humano encantador. E também um dos
mais temíveis.
Viena ainda era uma antiga cidade imperial, cuja posição geográfica
entre os dois mundos irreconciliáveis deixados pela Segunda Guerra
Mundial havia terminado de convertê-la num paraíso do mercado negro e
da espionagem mundial. Eu não teria conseguido imaginar um ambiente
mais adequado para aquela compatriota fugitiva que continuava comendo
na taberna de estudantes da esquina por pura fidelidade às suas
origens, pois tinha recursos de sobra para comprá-la à vista, com
clientela e tudo. Nunca disse o seu verdadeiro nome, pois sempre a
conhecemos com o trava-língua germânico que os estudantes latinos de
Viena inventaram para ela: Frau Frida. Eu tinha acabado de ser
apresentado a ela quando cometi a impertinência feliz de perguntar
como havia feito para implantar-se de tal modo naquele mundo tão
distante e diferente de seus penhascos de ventos do Quindío, e ela me
respondeu de chofre:
- Eu me alugo para sonhar.
Na realidade, era seu único ofício. Havia sido a terceira dos onze
filhos de um próspero comerciante da antiga Caldas, e desde que
aprendeu a falar instalou na casa o bom costume de contar os sonhos em
jejum, que é a hora em que se conservam mais puras suas virtudes
premonitórias. Aos sete anos sonhou que um de seus irmãos era
arrastado por uma correnteza. A mãe, por pura superstição religiosa,
proibiu o menino de fazer aquilo que ele mais gostava, tomar banho no
riacho. Mas Frau Frida já tinha um sistema próprio de vaticínios.
- O que esse sonho significa - disse - não é que ele vai se
afogar, mas que não deve comer doces.
A interpretação parecia uma infâmia, quando era relacionada a um
menino de cinco anos que não podia viver sem suas guloseimas
dominicais. A mãe, já convencida das virtudes adivinhatórias da
filha, fez a advertência ser respeitada com mão de ferro. Mas ao seu
primeiro descuido o menino engasgou com uma bolinha de caramelo que
comia escondido, e não foi possível salvá-lo.
Frau Frida não havia pensado que aquela faculdade pudesse ser um
ofício, até que a vida agarrou-a pelo pescoço nos cruéis invernos
de Viena. Então, bateu para pedir emprego na primeira casa onde achou
que viveria com prazer, e quando lhe perguntaram o que sabia fazer, ela
disse apenas a verdade: "Sonho". Só precisou de uma breve explicação
à dona da casa para ser aceita, com um salário que dava para as
despesas miúdas, mas com um bom quarto e três refeições por dia.
Principalmente o café da manhã, que era o momento em que a família
sentava-se para conhecer o destino imediato de cada um de seus membros:
o pai, que era um financista refinado; a mãe, uma mulher alegre e
apaixonada por música romântica de câmara9 e duas crianças de onze
e nove anos. Todos eram religiosos, e portanto propensos às
superstições arcaicas, e receberam maravilhados Frau Frida com o
compromisso único de decifrar o destino diário da família através
dos sonhos.
Fez isso bem e por muito tempo, principalmente nos anos da guerra,
quando a realidade foi mais sinistra que os pesadelos. Só ela podia
decidir na hora do café da manhã o que cada um deveria fazer naquele
dia, e como deveria fazê-lo, até que seus prognósticos acabaram
sendo a única autoridade na casa. Seu domínio sobre a família foi
absoluto: até mesmo o suspiro mais tênue dependia da sua ordem.
Naqueles dias em que estive em Viena o dono da casa havia acabado de
morrer, e tivera a elegância de legar a ela uma parte de suas rendas,
com a única condição de que continuasse sonhando para a família
até o fim de seus sonhos.
Fiquei em Viena mais de um mês, compartilhando os apertos dos
estudantes, enquanto esperava um dinheiro que não chegou nunca. As
visitas imprevistas e generosas de Frau Frida na taberna eram então
como festas em nosso regime de penúrias. Numa daquelas noites, na
euforia da cerveja, sussurrou ao meu ouvido com uma convicção que
não permitia nenhuma perda de tempo.
- Vim só para te dizer que ontem à noite sonhei com você - disse
ela. - Você tem que ir embora já e não voltar a Viena nos
próximos cinco anos.
Sua convicção era tão real que naquela mesma noite ela me embarcou
no último trem para Roma. Eu fiquei tão sugestionado que desde então
me considerei sobrevivente de um desastre que nunca conheci. Ainda não
voltei a Viena.
Antes do desastre de Havana havia visto Frau Frida em Barcelona, de
maneira tão inesperada e casual que me pareceu misteriosa. Foi no dia
em que Pablo Neruda pisou terra espanhola pela primeira vez desde a
Guerra Civil, na escala de uma lenta viagem pelo mar até Valparaíso.
Passou conosco uma manhã de caça nas livrarias de livros usados, e na
Porter comprou um livro antigo, desencadernado e murcho, pelo qual
pagou o que seria seu salário de dois meses no consulado de Rangum.
Movia-se através das pessoas como um elefante inválido, com um
interesse infantil pelo mecanismo interno de cada coisa, pois o mundo
parecia, para ele, um imenso brinquedo de corda com o qual se inventava
a vida.
Não conheci ninguém mais parecido à idéia que a gente tem de um
papa renascentista: glutão e refinado. Mesmo contra a sua vontade,
sempre presidia a mesa. Matilde, sua esposa, punha nele um babador que
mais parecia de barbearia que de restaurante, mas era a única maneira
de impedir que se banhasse nos molhos. Aquele dia, no Carvalleiras foi
exemplar. Comeu três lagostas inteiras, esquartejando-as com mestria
de cirurgião, e ao mesmo tempo devorava com os olhos os pratos de
todos, e ia provando um pouco de cada um, com um deleite que contagiava
o desejo de comer: as amêijoas da Galícia, os perceves do
Cantábrico, os lagostins de Alicante, as espardenyas da Costa Brava.
Enquanto isso, como os franceses, só falava de outras delícias da
cozinha, e em especial dos mariscos pré-históricos do Chile que
levava no coração. De repente parou de comer, afinou suas antenas de
siri, e me disse em voz muito baixa:
- Tem alguém atrás de mim que não pára de me olhar.
Espiei por cima de seu ombro, e era verdade. Às suas costas, três
mesas atrás, uma mulher impávida com um antiquado chapéu de feltro e
um cachecol roxo, mastigava devagar com os olhos fixos nele. Eu a
reconheci no ato. Estava envelhecida e gorda, mas era ela, com o anel
de serpente no dedo indicador.
Viajava de Nápoles no mesmo barco que o casal Neruda, mas não tinham
se visto a bordo. Convidamos para mulher a tomar café em nossa mesa, e
a induzi a falar de seus sonhos para surpreender o poeta. Ele não deu
confiança, pois insistiu desde o princípio que não acreditava em
adivinhações de sonhos.
- Só a poesia é clarividente - disse.
Depois do almoço, no inevitável passeio pelas Ramblas, fiquei para
trás de propósito, com Frau Frida, para poder refrescar nossas
lembranças sem ouvidos alheios. Ela me contou que havia vendido suas
propriedades na Áustria, e vivia aposentada no Porto, Portugal, numa
casa que descreveu como sendo um castelo falso sobre uma colina de onde
se via todo o oceano até as Américas. Mesmo sem que ela tenha dito,
em sua conversa ficava claro que de sonho em sonho havia terminado por
se apoderar da fortuna de seus inefáveis patrões de Viena. Não me
impressionou, porém, pois sempre havia pensado que seus sonhos não
eram nada além de uma artimanha para viver. E disse isso a ela.
Frau Frida soltou uma gargalhada irresistível. "Você continua o
atrevido de sempre", disse. E não falou mais, porque o resto do grupo
havia parado para esperar que Neruda acabasse de conversar em gíria
chilena com os papagaios da Rambla dos Pássaros. Quando retomamos a
conversa, Frau Frida havia mudado de assunto.
- Aliás - disse ela -, você já pode voltar para Viena.
Só então percebi que treze anos haviam transcorrido desde que nos
conhecemos.
- Mesmo que seus sonhos sejam falsos, jamais voltarei - disse a
ela. - Por via das dúvidas.
Às três, nos separamos dela para acompanhar Neruda à sua sesta
sagrada. Foi feita em nossa casa, depois de uns preparativos solenes
que de certa forma recordavam a cerimônia do chá no Japão. Era
preciso abrir umas janelas e fechar outras para que houvesse o grau de
calor exato e uma certa classe de luz em certa direção, e um
silêncio absoluto. Neruda dormiu no ato, e despertou dez minutos
depois, como as crianças, quando menos esperávamos. Apareceu na sala
restaurado e com o monograma do travesseiro impresso na face.
- Sonhei com essa mulher que sonha - disse.
Matilde quis que ele contasse o sonho.
- Sonhei que ela estava sonhando comigo disse ele.
- Isso é coisa de Borges - comentei.
Ele me olhou desencantado.
- Está escrito?
- Se não estiver, ele vai escrever algum dia - respondi. - Será
um de seus labirintos.
Assim que subiu a bordo, às seis da tarde, Neruda despediu-se de nós,
sentou-se em uma mesa afastada, e começou a escrever versos fluidos
com a caneta de tinta verde com que desenhava flores e peixes e
pássaros nas dedicatórias de seus livros. À primeira advertência do
navio buscamos Frau Frida, e enfim a encontramos no convés de turistas
quando já íamos embora sem nos despedir. Também ela acabava de
despertar da sesta.
- Sonhei com o poeta - nos disse.
Assombrado, pedi que me contasse o sonho.
- Sonhei que ele estava sonhando comigo disse, e minha cara de
assombro a espantou.
- O que você quer? Às vezes, entre tantos sonhos, infiltra-se algum
que não tem nada a ver com a vida real.
Não tornei a vê-la nem a me perguntar por ela até que soube do anel
em forma de cobra da mulher que morreu no naufrágio do Hotel Riviera.
Portanto não resisti à tentação de fazer algumas perguntas ao
embaixador português quando coincidimos, meses depois, em uma
recepção diplomática. O embaixador me falou dela com um grande
entusiasmo e uma enorme admiração. "O senhor não imagina como ela
era extraordinária", me disse. "O senhor não resistiria à tentação
de escrever um conto sobre ela". E prosseguiu no mesmo tom, com
detalhes surpreendentes, mas sem uma pista que me permitisse uma
conclusão final.
- Em termos concretos - perguntei no fim -, o que ela fazia?
- Nada - respondeu ele, com certo desencanto. - Sonhava."
Gabriel Garcia Marquéz
(in "Doze contos peregrinos")
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