24 dezembro 2006

Na Tal Noite



Vinte e cinco, Natal. O quissimusse (*), como se diz aqui. Mariazinha, à porta, espera a anual visita de Sidónio Vidas, o esposiódico esposo. Ei-lo agora, em aparatosa aparição, santificado seja ele e mais a ostentativa viatura.

Mariazinha parece viúva, alinhada com seus dois filhos, na entrada da porta. Ela contempla o volumoso Sidónio, parecendo uma gelatina a ser descolada de fundo de lata. Ele nunca tanto chegara. Fazia como a chuva procede com as fontes secas: inundava após ausência. Mariazinha, atrapalhada, segreda aos miúdos:

- Já sabem: ao sinal combinado vocês desaparecem das vistas !

Os filhos rabeiam o olho na mãe, irreconhecendo-a: vestido cheiroso, penteado de cabeleireiro, unhas de manicure. E receiam que, uma vez mais, seja mais desencontro que encontro. Havia sido assim desde o princípio: a noite sem núpcias, o esposo cadente, com juramento sem prazo.

Os miúdos já sabiam: o pai trabalhava longe em país muitíssimo estrangeiro, a distâncias que só lhe dava conveniência visitar a família na noite de vinte cinco. Cada ano, o pai chegava com seus
carros sempre novos. O remoto controle accionado, num blip-blip mágico e, da bagageira, como em arrumo de trenó, saltavam os presentes, alegria aos molhos.

Desta vez, muda o carro e toca mesmo. O pai faz abrir a mala do automóvel e de lá espreitam embrulhos e celofanes. São mais os embrulhos que os conteúdos mas não é assim mesmo a festa: feita de ilusão e brilhos maiores que as substâncias ? Os miúdos, algazurrando, precipitam-se sobre os presentes. E ali ficam, no quintal, entretidos com as ofertas.

Sidónio dá entrada na sala, a esposa segue-o, diminuta, protocolar. Sidónio engrossa as vistas pela sala. Sobre o armário um improvisado presépio. Só as palhinhas do menino nascente são genuínas. O resto é invenção desenrascada, tampinha de Coca-Cola, arames e restos de lixos.

O homem senta-se à mesa, refastelado, dono. Vai desapertando a fivela do cinto para, em prevenção, se valer por dois. Mariazinha assome à porta e, com um estalar de dedos, reafirma a ordem: os filhos que se mantenham longe. Aquele momento era exclusivo dos dois, a noite de todas as noites.

- Fritei um peixe, aquele que você morre pela boca.

O esposo, estala os dentes na língua, e fazia passar as espinhas pelos beiços. A esposa comendo em pé, prato no apoio da mão, vai olhando o marido. Replandecendo no pescoço o fio de ouro, ambos cada vez mais gordos. O ouro parecia autentico. Falsificado era o portador, sem marca de origem, nem garantia de proveniência. Sempre que vinha exibia acrescidos fios e anéis, douradoiros. Para que ela não pensasse que ele tinha ido cavalo e regressava burro.

- Cuidado marido, a espinha na goela.

- Goela tem o pobre, emenda Sidónio. Gente como eu tem garganta, está perceber?

Sidónio Vidas arrota a marcar parágrafo na refeição. Mais calado que um deus, distante, confiante. De quando em quando, a meia palavra e nenhum entendimento. Toca o telemóvel, altíssonoro, ele grunhe palavras de nenhum idioma. E desliga como se desligasse não o aparelho mas o interlocutor.

- Há sobremesa. Um docinho ?

- Estava com falta de açúcar mas o vizinho, o Alves...

- Pois é, açúcar com gentil cortesia do vizinho Alves.

O tom era irónico, magoado, suspeitoso. O vizinho Alves estava-se avizinhando demais ?

- Mariazinha, você me está ser fiel ?

- Eu ? Afonso, eu...

Ela, desencontrada das palavras, derramou-se, chorosa. Podia ele, de humano direito, duvidar ?

- Seque-se, mulher.

Que aquela comoção lhe afligia a digestão. Sidónio viu-se obedecido. Passou a mão pela barriga, com a mesma ternura com que as grávidas acariciam o vindouro.

- Não quero esse doce.

- Mas Afonso fiz para si, com tanto ...

- Não me apetece, pronto.

Mariazinha recolheu o prato, junto com a lágrima. Na cozinha assoou-se, olhando pelo quebrado vidro da janela a luxuosa viatura do marido. Quem vai à guerra dá e leva, se diz. Mas ela ida à Paz só tinha levado. E ali estava, o Mercedes, cheio de auto-suficiência. Em vez de inveja, porém, lhe veio um alegre preenchimento. Como se o automóvel fosse propriedade sua e ela, alguma vez, viesse a espampanar suas larguezas nos estofos.

Regressa à sala e manteve-se encostada ao armário. O móvel abana e tombam os bonequinhos. Cristo desaba do berço. Sidónio, pela primeira vez, concede olhar a esposa. E confirma o ditado: que o homem é tão velho quanto a sua idade e a mulher é tão velha quanto parece. Olha as mãos dela, nota o verniz. Mariazinha se esgateia, às pressas recolhendo aquela vaidade.

- Pintei hoje de manhã, pedi à vizinha uma tintinha emprestada.

- Sou capaz de ter que rever essa mesada.

- Ah, a mesada, já há dez meses que voce não...

- Tenho prioridades, Mariazinha.

Finda a refeição, descalçados os sapatos, Sidónio escompridou-se na cadeira e fechou os olhos, todo atento aos interiores. Sucede, então, o imprevisto. A mulher, subitamente dengosa, se debruça sobre ele, aumentando a visão das suas carnes.

- Me está a apetecer dançar. Não quer ligar essa musiquinha, marido ?

- Qual música ?

-Essa do seu telemóvel.

Sidónio levanta-se, arrastado. Os olhos dela ainda rebrilham, esperançosos. Mas não é para ela que ele se ergue. São horas, está de abalada. À porta, ela ainda requere, em sussurro:

- Para o ano, você volta ?

- Não sei, mulher, não sei, você sabe a coisa não está fácil...

- Mas você pode trazer os seus outros.... os irmãos dos seus filhos. E pode trazer a ... ela, também. Eu não me importo, Sidónio.

Mas ele já não está na conversa. Chama os filhos para a despedida e ruma para o carro. Enquanto se espreme para entrar na viatura, Mariazinha comenta para os miúdos:

- Aquele é um homem bom que ainda há nesse mundo.

E o mais novo, apertando a mão da mãe:

- Ele é que aquele que chamam de Pai Natal ?

Riso triste vai esvanecendo no rosto da mãe enquanto Sidónio desaparece no fundo escuro da estrada. Mãe e filhos ficam contemplando a noite, como que esquecidos que havia casa onde reentrar. De súbito, o mais velho sacode a saia da mãe e aponta:

- Veja, mãe, está chegar o vizinho, senhor Alves.

Mariazinha, apressadamente, compõe vestido e sorriso, e murmura:

- Já sabem, meninos: ao sinal combinado, vocês desaparecem das vistas!


Mia Couto


(*) Quissimusse- Natal nas línguas do Sul de Moçambique. Corruptela do inglês, Christmas

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