27 janeiro 2007

Ave e nave

A pedido da boa razão, venho explicar como minha mulher Aurora se converteu em ave, decepação de nuvem, duas metades de nada.

Não foi coisa acontecida de repente. Sempre ela teve seus pés pequenitos, coisa sem tamanho nem volume para ser calçado. Eu apreciava esses pezitos dela, uns quase chineses apêndices a contrariar sua autêntica raça de fabrico. Apaixonei-me por ela, diga-se na passagem, por aquelas anatomiazinhas dela. Certo dia, entrávamos na embarcação para a ilha e nos descalçámos para atravessarmos as águas à maneira dos humanos. Na chegada à praia, ela me pediu que lhe secasse as pernas. Apoiei seus calcanhares nos meus joelhos e lhe enxuguei com delicadezas. Ela se desgotejou, eu me gostejei. Enquanto esfregava os pés, ela fechava os olhos, ao peso do prazer. Percebi que havia uma outra boca nessa parte de seu corpo e eu a beijava. Desde aí, sempre que namorávamos, eu lhe começava pelos pés, delicadas portas para sua intimidade.

Em nosso lar, ela caminhava por seus passos miudinhos, pisando os cantos escuros do tempo. Eu lhe oferecia sapatos, sua maior prenda. Homenagem ao nosso princípio de nossa paixão. O amor é o mais forte.
Por isso, acaba sempre derrotado?

Até que, certo dia, ela chegou e me disse:

- Veja meus pés. Estão diminuindo.

E me mostrou seus pezitos rareados. Com o tempo, ainda mais se reduziram. Até que lhe restaram todos os sapatos, sobrados, sem serviço. Passou a usar sapatinhos de criança, depois de bebé, depois nem nenhuns. A nudez de seus pés eram a bastante e demasiada cobertura. Dia para dia, ela se reduzia nas inferiores extremidades.
Até que lhe desapareceram os pés, por descompleto. As pernas lhe terminavam em tocos, sem cerimónia nem boas maneiras.

- Lepra?

Era pergunta do doutor, intrigado e enredado nos compêndios. Mas doença já vista não era. Saído do hospital eu a levava no colo, igual um filho que se carrega por demasiada infância.

- Já não me ama?

- E porquê?

- Me faltam meus pés, sua primeira paixão.

E aquilo ainda mais nos havia de assombrar. Pois, no seguinte, foram as pernas que murcharam, parecidas a caules sem raiz.

E toda ela minguou, por desigual. Tronco, cabeça, braços para que vos quero. Seu corpo se consumiu, tragado pelo nada. No armário, já não eram apenas os sapatos que se empoeiravam. Os vestidos também murchavam, agitados apenas por estranha e invisível brisa. A saudade,
quem sabe.

Até que, no final, sobraram apenas as mãos. As duas exclusivas e cada uma. Dela não restavam mais que as mãos, como duas asas separadas.

Agora, eu chego a casa e elas esvoaçam para mim como pombas me festejando. E se deitam como lenços tristes, na almofada junto à minha. E assim vivemos eu e - podemos dizer - ela. Fui eu envelhecendo, emagrecido no corpo mas mais pesado no gesto. Ela parece feliz, igual ao que fora.

Às vezes eu penso: Aurorinha já se foi deste mundo. Quem sabe aquela é a sua maneira de ter morrido? E me despeço das mãos que são dela. Que são ela.



- Mia Couto -

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