17 janeiro 2007

Casamento e Fuga

Porto foi uma cidade de namoradores. Quem passasse pela área larga da Rua da Boavista, encontrava sinais muito estranhos de idílios rotineiros do fim da tarde. Um rapaz magro, de calças bem vincadas, que tinha trazido com ele um banquinho de tesoura como os que se usavam nas praias, estava sentado ao nível da cave e trocava com a sua amada doces palavras não muito brilhantes decerto, mas que tinham a convicção dum tribuno na sua melhor exortação. Da mulher só se via a cabeça e os ombros, como se fosse a estátua da República. Era o fim dum dia de calor e regressavam da praia os eléctricos quase vazios. Lufadas de ar morno varriam os passeios e o carro da rega passava, pondo um maldoso acinte em banhar com um borrifo os namorados. Ele sacudiu pacientemente as gotas que lhe caíram nos ombros e continuou a conversa com a amada. O amor fazia-o suavíssimo e distraído de ofensas e provocações. Ela não gostava que ele fosse tão indiferente. Parecia-lhe tímido e não saberia o que fazer com um noivo que se acobardasse em momentos em que fosse preciso responder com algum desabrimento. Além disso, os pais que têm filhas para casar não sentem nenhuma simpatia por rapazes que demoravam a decidir-se, como era o caso do nosso namorador. Preferiam (Deus lhes perdoe) os atrevidos, que não pensam senão em iludir as jovens e levá-las a praticar actos proibidos. Esses casam depressa e fazem-no com uma boa dose de aventura, porque não esperam ser felizes mas só conseguir um pouco de estabilidade que é caminho para melhores dias.
Quem tinha filhas para casar, era uma dor de cabeça. Ia para as termas onde se juntavam as famílias com haveres e nome honrado e que esperavam que o ano fosse bom, como na lavoura se espera boa colheita. Apareciam os brasileiros com botões de punho de ouro e rubis; ou os rapazes que estudavam engenharia na Bélgica e que conduziam as motas Indiam pelas más estradas. Havia as viúvas dos gaseados de guerra, que traziam com elas as bonitas órfãs de modos ariscos e impertinentes. Embora as raparigas dos anos 20 fossem educadas para seduzir, obedecer e ter filhos, antes de entrarem na paz dos chamados "jarrões" havia algumas que se mostravam independentes e opiniosas. Eram sobretudo filhas de viúvas ricas em cuja educação não estivera presente o homem de princípios.
- As mulheres de que os homens mais gostam são as que não os incomodam - disse José Maria Lima, da casa dos Lima que vendia chapéus de homem e sombrinhas de senhora. Não pensem que era pequeno ofício, porque setenta por cento do Porto era lojista e pertencia à brigada dos bons costumes e das boas contas, sem as quais não há maneira de ser um bom cidadão.
- Eu acho que as mulheres só devem intervir nas conversas para dizer que a sopa está na mesa.
"Como um cacho de lilases", disse o poeta.
Mas vamo-nos deter no jovem José Maria Lima. Era irmão da menina namoradeira que se chamava Purificação. Era aristocrático chamar-se Purificação ou Clotilde, nomes que caíram em desuso e tinham a sua história. Cloto era uma das Parcas, a que fiava os dias dos homens. E havia princesas com esse nome, senhoras piedosas e de elevados sentimentos cristãos, o que levava a burguesia a ponderar sobre esse nome e fazê-lo cair com a água do baptismo, como um bom presságio, na cabeça das suas filhas.
- Mas havia também uma Clotilde Agustina, que foi bailarina e que teve amores galantes - disse Pura. Em casa dos Lima sempre se discutia muito a genealogia das pessoas e passava-se imenso tempo a fazer cálculos e suposições sobre o possível laço entre famílias. José Maria Lima não se interessava por esse passatempo. Era o filho bem-amado duma dessas senhoras de sua casa, que levam vinte anos a juntar um enxoval digno duma rainha e outros vinte a mantê-lo em ordem, contando peça por peça os lençóis de cambraia de linho. Uma mulher assim laboriosa foi sempre uma pérola rara que até consta do Velho Testamento.
Depois de ter cumprido quarenta anos não se falava mais duma mulher como objecto de desejo. O ciúme transformava-se em inveja e apareciam os sinais com cabelo na cara, fenómeno que tinha um tom fidalgo, como se pode ver na condessa de Ribamar, uma figura de Eça de Queirós. Madame Deffand, que foi amiga de Voltaire, tinha chegado a uma idade e estava num estado que não se podia dizer nada da sua figura. Mas hoje, ou já no tempo de Pura, não sei se isso era considerado impedimento. Ela namorava há nove anos e prestava à figura que tinha uma adoração de rapariga. O desejo de serem amadas faz com que se entreguem ao vício de serem belas. Havia no Porto duas mulheres, mãe e filha, que toda a vida se dedicaram a essa ocupação de parecerem formosas e bem tratadas. O marido da mais nova acompanhava-as com uma dedicação que tinha o cunho dum ritual, e por toda a parte eram vistos os três, como personagens de pantomina, as mulheres pintadas e vestidas como para o palco, e ele com aquela virtuosa obediência dum eunuco de piedosos gestos e servidão.
"Para ter prazer é preciso um pouco de paixão", escrevia Voltaire. Mas a distracção que envolve o corpo e os seus efeitos não arrasta paixão. Pelo que a figura bem tratada demais ilude mas não convence. O rapaz que trazia um banquinho para namorar, à tarde, rente à janela da casa na parte larga da Rua da Boavista, era um desses apaixonados que se encontram de cem em cem anos e que são pessoas a quem a sociedade fica a dever muito no campo das ciências humanas. Tinha namoros em quatro ou cinco ruas da cidade e, o que era mais extraordinário, é que eram todas suas noivas. A todas contemplava com um sentimento terno e inabalável. A psicanálise ainda não se divulgara como método de cultivar doenças que, provavelmente, não eram outra coisa senão a paixão em estado indestrutível que é a crença na felicidade. Não se ama para conseguir qualquer espécie de soberania, mas para ter felicidade. Essa felicidade ociosa do Paraíso em que nada nos faltava e nada era objecto de desejo.
Se, na parte larga da Rua da Boavista, onde se levanta o edifício do Hospital Militar, os passeios são amplos e permitiam o namoro na vadeirinha, o mesmo não acontecia noutros bairros do Porto. Então era o namoro de janela, feito por sinais e olhares, na meia-folha duma cortina de croché. A jovem saía só para comprar miudezas e para ir à modista, e não trabalhava fora de casa. Havia na Rua da Torrinha uma rapariga duma beleza incrível, dessas que o Porto produzia dentro das suas paredes de reboco escalavrado, e que se sustentava de chá e de sonhos fantásticos que incluíam um actor de cinema. Algo de inacessível, que é o que os sonhos têm de mais empolgante. Também essa menina, Florinda, constava na agenda do nosso namorador e ele seguia-a na rua, fazia com ela, mas não a par, a Volta dos Tristes que era o caminho entre Santa Catarina e Sá da Bandeira. Santo António, depois crismada de 31 de Janeiro, era onde começava o comércio de luxo; as sapatarias e as primeiras boutiques de alto preço estavam lá, assim como uma ourivesaria famosa. Uma das ambições das mulheres mais bonitas da cidade, sendo novas, era servir ao balcão dessas casas frequentadas pelas pessoas mais importantes pelo dinheiro e pela elegância. Florinda chegou a empregar-se numa dessas lojas e parecia de facto uma estrela de cinema a rodar uma comédia romântica. Depois das cinco da tarde os rapazes iam ver Florinda e havia apostas quanto à decisão dalgum para casar com ela. O namorador não se preocupava porque, no Porto, mulher muito bela não consegue passar a barreira das mães que estão de vigia aos destinos dos seus rapazes, evitando que eles tomem compromissos impróprios. Florinda teria que se contentar com um engenheiro de moderados recursos e cuja formação de esquerda lhe dava autoridade moral sobre os preconceitos. Mas, entretanto, o namorador estava presente e gozava da companhia duma rapariga bonita como os anjos e que o amava. Ela alimentou sempre a esperança de entrar numa família publicamente reconhecida tendo poder financeiro, e também na tradição burguesa. Nada parecido com ferrageiros, que os havia ricos e generosos com as mulheres ou, pelo menos, resignados com os caprichos delas.
As mulheres eram caprichosas. O meio cativeiro em que viviam tornava-as voluntariosas e inclinadas à mentira. Florinda era demasiado indolente para se lançar em aventuras e esperava que um bom rapaz se decidisse para começar uma vida de magistratura conjugal, se é que se pode dizer assim
Havia outra rapariga na lista do namorador que vivia para o lado da Capela das Almas, num lugar que sofreu transformações e que dantes tinha um encanto especial, de cidade europeia. Onde se percebia que o Porto era uma cidade europeia, era nesse encontro entre Santa Catarina e Sá da Bandeira, indo atingir o seu limite na Praça do Marquês de Pombal, onde se situava a moradia de gente muito influente e de grande nome na medicina. Um dos homens da casa tinha casado com a violoncelista Guilhermina Suggia, que o Porto nunca adoptara inteiramente porque não era favorável ao lado excêntrico da vida. Ao Porto não lhe interessava a fábula mas o concreto, e a Suggia, com os seus extraordinários vestidos de palco que não eram elegantes, eram simbólicos, era motivo de chacota.
Dizia eu que nas imediações da Capela das Almas vivia uma menina, gorda e lustrosa, que se chama Alice, e também Noémia, e que era uma das mais ricas herdeiras da cidade. Era filha duma criada, mas os patrões, sem filhos, tinham-lhe ganho um amor entranhado e feito dela um monstro de soberba e de paixões escondidas. O namorador escolheu-a com particular predilecção e estudou a maneira de lhe chamar a atenção. Mandava-lhe flores com um cartão que tinha o nome dele impresso em relevo, mas depressa mudou de táctica. Nos hábitos do Porto não constam as flores, sobretudo quando se trata duma menina solteira. Pediu para lhe ser apresentado no clube, e desde aí não deixou de estar presente em todos os lugares onde sabia que Alice estava. Era costume ter-se um camarote no cinema como se tinha uma frisa em S. Carlos, e o namorador ia para a plateia e sorria-lhe duma maneira distraída, o que a enervava. "Quem pensa ele que é?" - dizia Alice. Tinha um génio violento e os rapazes temiam-na um bocado. Não o namorador, que se impunha por uma arrogância discreta. "Essa mulher será minha. As vaidosas são fáceis de conquistar porque são uma espécie de mendigas. Com todo o dinheiro que tem, ela pede esmola dum elogio como se fosse pão para a boca."
Com razão ou não, o namorador acabou por se insinuar na família. Foi preciso agradar à mãe, à criada e a uma série de mulheres que viviam na casa e eram uma espécie de conselheiras privadas. Faziam costura e recados, sabiam tudo o que se passava na cidade, conheciam todas as lojas e estavam a par de casamentos, falências e viagens. O padre da freguesia também deu a sua opinião, e o namorador ficou aprovado como pretendente de Alice. Tinha de abdicar dos seus outros namoros, e isso causava-lhe uma profunda preocupação. Amava-as todas e não sabia descartar-se delas. Florinda porque era lindíssima, pobre e humilde; outra porque era irmã dum amigo e respeitava-a por isso. Gostava de namorar com ela, sentado no banquinho de praia, ao entardecer de Verão. Era a noiva mais antiga que tinha e tanto um como outro não pareciam apressados em casar. Era uma virtude apreciável numa mulher, e o namorador levou isso em consideração. No Porto, levar uma coisa em consideração é um atestado de que não é possível fugir, como se fosse feito num notário.
Outra mulher que, entretanto, o namorador conheceu morava na Rua dos Mártires da Liberdade, que também era conhecida pela Rua dos Casados. Este era a espécie de humor que o Porto usava e que sempre caía bem nas conversas de família. Esta namorada, a quinta rapariga de seis irmãs, era perfeitamente dotada de beleza física e moral e chegara a ser candidata no concurso de Miss Portugal. Tinha uns olhos castanhos que pareciam ouriços-do-mar, e o namorador achava-a encantadora, com essa graça da mulher do Porto que tem um pouco de Vénus e Vestal. Com esta, eram quatro namoradas, de berços diferentes e entre as quais era difícil escolher. Enquanto que para namorar Purificação, o pretendente não precisava de disfarçar as suas intenções nem pôr em dúvida os seus objectivos, porque pertencia à mesma casta que ela, com as outras era diferente. Florinda tomava-o por um galanteador sem muitas hipóteses de assentar no casamento, e Alice perguntava se ele algum dia se ia declarar e marcar a data do noivado. A última, Filomena, a que ditava que o namorador a desejava e que faria tudo para fazer dela sua mulher.
- Não sei porque digo, mas é uma fézada que tenho.
Ter "uma fézada" significa ter uma certeza mas em que o pudor intervém. Eram companheiros e amantes entre o casto e o libidinoso. Os beijos que trocavam deixavam sempre um sabor excitante de experiência e não de hábito. Andavam juntos com um à-vontade que em geral se perde com o casamento. Iam às mesmas festas populares, aos mesmos bailes de associações, aos mesmos almoços no campo com arroz de frango e creme queimado. Para aguentar um regime destes, tanto social como alimentar, é preciso ter bom estômago. O namorador tinha-o. O tempo foi passando e o namorador fazia parte da família dos bairros onde tinha noiva. Estes namoros de muitos anos eram frequentes no Porto antigo e bem aceites pela comunidade. Estabilizavam as emoções sem profanar o sexo, que se destinava à fecundidade e talvez a uma experiência madura que traz consigo o respeito mútuo. Casal que prolongava o noivado era bem visto e convidado de toda a hora para festas de família. Viviam juntos tudo o que fossem coisas de entendimento, compras de enxoval e histórias de parentes. Era um tempo de grande felicidade. O facto de não terem que deixar o lar paterno fazia-os amigos da mesma esperança, só que sem saudade e sem os perigos da adaptação a uma nova vida.
Mas, com o andar dos dias, os pais adoptivos de Florinda, temendo pelo fim deles, porque já eram velhos, casaram-na de repente com o filho dum solicitador, íntimo da casa e de quem não se esperavam surpresas. O namorador ficou muito dorido com a desfeita e consolou-se com as duas outras noivas, Alice e Filomena, que não lhe pediam nada e eram felizes como estavam. Ele continuou a desfrutar de liberdade, a ir para a caça com o Lima da Boavista, que também era do género solteirão. Estavam ambos muito calvos, mas as mulheres reparavam neles com agrado porque eram bem parecidos e tinham ganho um à-vontade de sócios do mesmo clube. Além disso, eram ricos. O Lima, cuja loja de chapéus e guarda-chuvas não prosperava mas que ele mantinha porque era um ponto de reunião dos boémios da cidade, acabou por casar com uma rapariga do seu meio. A irmã dele começou a ficar nervosa e já não abria a janela da cave para namorar. Fazia sessões de costura e ia a partidas de canasta com as amigas e desleixou um pouco o noivado. O namorador foi-se tornando menos assíduo e voltou-se para a menina dos Mártires, que era mais nova e que, se contava com ele para casar, não o demonstrava. O pai dela tocava na Filarmónica do Porto e, nos dias de concerto, via-se no quintal a casaca, pendurada no arame, para arejar. Era uma gente honrada, com gostos obstinados quanto à música e a festa do Senhor de Matosinhos. Tratavam o namorador por doutor e faziam-lhe uma vénia quando o viam. Eram todos muitíssimo educados e entreolhavam-se quando alguém dizia, dentro de casa, uma palavra mais atrevida, como, por exemplo, a palavra amante. Era uma palavra só para grandes ocasiões e que só era proferida quando acompanhada duma espécie de solene reprovação. O namorador deliciava-se com aquilo. Os costumes, as conversas da burguesia média-baixa agradavam-lhe pela sua dimensão puritana e sensível quanto à sua elevação. As raparigas iam casando com funcionários dos correios ou caixeiros de retrosarias, que eram gente "muito escolhida", como elas diziam. Falavam pouco e tinham bonitos modos um tanto clericais. Conhecer a nata das senhoras do Porto dava-lhes um sentido quase se diria de estado.
Um dia, Alicinha, que não era mulher para provocações, apareceu vestida para sair, com um chapéu ridículo na cabeça, como o chapéu que tinha Simone de Beauvoir quando Sartre a viu pela primeira vez.
- Arranjei um emprego - disse Alicinha, muito despachada. Havia uma classe de mulheres educadas que se empregavam na Companhia dos Telefones, que era uma companhia inglesa. Correspondia ao emprego na casa de vinhos, que era destinado aos rapazes de sociedade. Mas Alicinha não podia aspirar a tanto e foi para um escritório para bater à máquina cartas e mais cartas, o que a deixava triste e desanimada. Continuava bonita de morrer e o filho do patrão propôs-lhe casamento.
Ela chorava como uma vide quando contou ao namorador.
- E agora o que vai ser de mim? - disse ele, muito aflito. - Fico só no mundo, a minha mãe já morreu e só tenho em casa uma velha criada que passa a vida a limpar as pratas e os varões da passadeira. Não esperava isto de ti, Alice. É um namoro de doze anos.
- Pois é - disse ela, desfeita em lágrimas.
- Não te dói a separação?
Parecia que falava dum casamento consumado. Ela molhou a lapela do casaco dele com as lágrimas, e a beleza dos seus olhos aumentava, transbordantes de água, escurecidos e brilhantes. Virou costas, sempre a soluçar, e o namorador nunca mais a viu. Também não fez nada para a voltar a ver. Limitou-se às suas recordações mas, pouco a pouco, substituiu-as pelo tiro aos pratos. Era um razoável atirador e havia sempre mulheres novas na assistência que lhe dirigiam cumprimentos se ele acertava. Agora elas vestiam-se como os rapazes e mexiam muito nos cabelos, o que lhes dava um ar agarotado e simpático. O namorador foi-se adaptando às novas regras do jogo e tirava algum proveito dessa condescendência das jovens, que não era amor mas vaga insatisfação. Eram mais exuberantes porque eram mais insatisfeitas, isto a conclusão a que chegava o namorador. "A taciturnidade é um dos atributos da plenitude", disse-lhe um amigo que tinha fumos de intelectual. O namorador pensou que o seu Porto tinha passado e se tornara alegre como umas castanholas, sinal de vazio e de melancolia.
Nesse Inverno foi atropelado e nunca mais teve saúde.
- Que bom é viver! - ouviram-no dizer, com uma cara radiante.
Ninguém percebeu o que ele queria dizer com aquilo.

Augustina Bessa-Luís