18 março 2007

As cores do céu

Virgílio estranhou a cor do céu e a sua textura. Largas manchas de tinta escura alastravam, como uma aguarela melancólica, sobre o frio fulgor da tarde. O céu está sempre por cima de nós, mas raramente nos detemos a olhá-lo. A maioria das pessoas anda pelas ruas das grandes cidades de olhos baixos, com receio de pisar em cocó de cão, ou até pior, e por isso não repara na cor do céu. As pessoas estão mais atentas ao cocó, digamos assim, do que ao espectáculo da luz.
Virgílio, pelo contrário, andava sempre com a cabeça erguida, como as figuras do carioca Heitor dos Prazeres, pintor ingénuo, compositor e boémio, que passou boa parte da vida a desenhar gafieiras e rodas de samba. Os personagens de Heitor dos Prazeres têm invariavelmente a cabeça levantada, de um jeito um pouco estranho, quer estejam a dançar (e quase sempre estão a dançar) ou a trabalhar no campo. Riem muito. A vida para eles é uma festa perpétua.
Virgílio parecia saído de uma tela de Heitor dos Prazeres. Sentou-se no banco de um jardim a olhar o céu. Veio-lhe à memória uma cena, no filme de Peter Webber, "Rapariga com Brinco de Pérola", em que Johannes Vermeer abre a janela e mostra o céu à rapariga. "De que cor são as nuvens?". Ela hesita: "Brancas?", e logo corrige: "Não. São amarelas, rosadas, azuis, têm muitas cores".


Certo, concordou Virgílio. O céu é uma tela imensa e nela acontecem todas as cores, e os seus infinitos tons e cambiantes - veja-se um arco-íris, um crepúsculo africano, uma aurora boreal. Há até cores que apenas existem, aladas e efémeras, em certos céus mais recônditos.
Numa outra cena do filme de Peter Webber, o mecenas de Vermeer lembra que o amarelo da índia, muito utilizado pelos pintores da época, provinha de um pigmento extraído da urina de vacas alimentadas exclusivamente com folhas de mangueira. Virgílio reflectiu um pouco. Concluiu que a beleza pode encontrar-se nos lugares mais improváveis. O amarelo da Índia foi descoberto porque alguém se debruçou um dia sobre a urina de uma vaca que se alimentava de folhas de mangueira.

Virgílio riu-se, surpreendido com o achado, e ali mesmo tomou a decisão de baixar mais vezes os olhos enquanto caminhasse. Levantou-se e experimentou percorrer alguns metros de olhos baixos. Fê-lo com certa dificuldade, em primeiro lugar porque se habituara a trazer o pescoço erguido, e a nova posição provocava-lhe cãibras, e, por outro lado,porque "não conseguia distinguir, no chão, sujo e desarrumado, beleza alguma. Ocorreu-lhe que a beleza está em toda a parte mas que as pessoas precisam de se exercitar para a descobrir. Muitas pessoas olham para as nuvens, por exemplo, e só vêem nuvens. Nuvens brancas. Antes da descoberta do amarelo da Índia milhões de camponeses devem ter-se debruçado sobre a urina das vacas, e o que viram foi apenas xixi, um pouco mais escuro por causa da dieta alimentar a que as vacas estavam sujeitas. Certamente é mais fácil descobrir a beleza olhando para o céu do que olhando para o chão. Ele deveria exercitar-se mais a olhar para o chão. Voltou a erguer os olhos e foi então que a viu. Era uma rapariga pálida, alta e frágil, e estava sentada num banco desdobrável, diante de um cavalete, a pintar. Aproximou-se dela. A cidade estendia-se, alguns metros abaixo, até ao rio. Na tela, porém, não havia nenhuma indicação da presença da cidade. O que se via era apenas o céu. Largas manchas de tinta "escura sobre o frio fulgor da tarde. A rapariga pousou o pincel e encarou-o:


"Conheço-o?", perguntou-lhe: "tenho a sensação que já o vi antes .... "

Virgílio suspirou:

"Não creio. Eu lembrar-me-ia."

"Sim, sim!", teimou a rapariga. Sorriu num esplendor: "Já sei. Vi-o no Museu Internacional de Arte Naif, no Cosme Velho, no Rio. Acho que você estava numa tela de Heitor dos Prazeres ... "


"Estou em quase todas", confirmou Virgílio. Sentou-se na relva, ao lado dela, segurando os joelhos com as mãos. Ficaram em silêncio. A rapariga misturou um pouco de branco com amarelo e iluminou as nuvens.
O céu abriu-se um pouco. Fazia frio, mas não ali.


-José Eduardo Agualusa-


(mais um texto "roubado" do conversas... mas gostei imenso... :-)))))) realmente, às vezes as coisas que valem a pena surgem nas nossas vidas da forma mais inesperada... mas não é sobre isso que tenho dissertado no pendulices??????? )

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