05 setembro 2007

É Dezembro em Paris...


Carta a Ana Olímpia
Paris, Dezembro de 1872



Minha doce Princesa,


É Dezembro em Paris. Era já Dezembro quando parti de Luanda deixando
para trás o esplendor do teu olhar.
E há-de ainda ser Dezembro depois que terminar o mês, e a seguir virá Dezembro e o Inverno, e novamente Dezembro e sempre assim, até que de novo eu retorne à Estação do Sol, que é em toda a parte todo o instante que o teu olhar ilumina.
Faz Dezembro em Paris. Após três semanas de neve e de frio as águas do Sena degelaram, engrossaram, e como uma imensa jibóia enfurecida - será talvez Muene-Zambi-dia-Menha, a divindade das águas de que tanto me falaste - o rio saltou sobre a cidade atropelando as pontes, arrancando as árvores, atacando casas, prédios e monumentos nacionais.
O nevoeiro cobre tudo como uma noite branca. Em pleno meio-dia as carruagens circulam com as lanternas acesas, enquanto nas esquinas grupos de polícias, segurando tochas, indicam o caminho aos pobres náufragos. Junto ao Arco do Triunfo, onde se reúnem doze avenidas, foram acesas altas fogueiras, mas a mais de duzentos metros já ninguém as vê. Os cocheiros perdem-se na bruma e vagueiam pela cidade como assombrações, com os passageiros aos uivos e os cavalos enlouquecidos, havendo casos de carros que cairam ao rio e de outros que se esmagaram contra as árvores ou edifícios.
Nesta cidade assim noitecida é a memória da tua luz que me guia e conforta. Vejo-te, constantemente te vejo, como pela primeira vez te vi, rodando belíssima nas voltas da
rebita ou meditando gravemente na Muxima, sozinha na capela, enquanto lá fora o rio imóvel sob o largo sol, a paisagem solene, o céu sem mácula, pareciam em silêncio meditar contigo. Vejo-te depois atravessando a galope a Praia dos Veados. Vejo-te rir ao longe e o teu riso chega até mim trazido pela brisa, salgado e fresco, húmido e forte, e eu volto a sentir, como então senti, a viva presença da Vida.
Quando me perguntaste, respirando exausta o mesmo ar que eu - e agora? - não soube o que responder. Três meses mais tarde ainda não conheço a resposta. Fui nómada a vida inteira. Atravessei metade do mundo, desde Chicago até à Palestina, desde a Islândia até ao Sahara e nunca soube que nome dar a essa errância aflita. Hoje sei que estava à tua procura. Sei que és o meu destino, a minha pátria, a minha igreja. Sei que ao deixar Luanda fez-se Dezembro e que desde então o Inverno ronda como um lobo esfomeado à minha volta.
Pretende Darwin que os homens descendem do macaco e na maior parte dos
casos será assim - foram descendo. Creio, porém, que com a minha família aconteceu o inverso, e ela se foi erguendo desde esse símio original até ao rude lusitano. Veio depois Afonso Henriques, vieram gerações de marinheiros e navegantes, os Açores foram descobertos e povoados, e nasci eu. De toda esta gesta oceânica resta-me um primo, o Louco André, que há vários anos comanda nos mares do norte um brigue aparelhado para a difícil pesca do bacalhau.

Viajei com ele no Outono de 1850 (agrada-me pensar que quando nasceste
eu atravessei o rumor branco dos mares da Gronelândia) e tive então oportunidade de lhe conhecer a alma, desenvolvida à medida e semelhança da natureza em que vive - agreste e fria, mesmo selvagem, mas também generosa e pura. Uma noite, já não sei a propósito de que brutalidade ou injustiça, explodiu um motim a bordo e os marinheiros amarraram-no e tomaram o comando do navio. Enquanto decidiam o que fazer com ele - as opiniões dividiam-se entre lançá-lo ao mar ou dar-lhe uma sova - pousaram-no na amurada. A discussão foi-se arrastando, uma, duas horas, até que por fim André soltou um grande brado: «Ou para dentro ou para fora, malandragem! Aqui é que não que já me doem as costas!».
Queres saber, amor, porque te conto este episódio? Porque, como ao meu primo André, inquieta-me menos o meu destino do que esta absurda espera. Escreve, diz-me o que decidiste. Condena-me ao Inverno ou salva-me dele.

Teu,


Fradique


P.S.
Os marinheiros puxaram André para dentro, desamarraram-no e ele retomou o comando do navio. Nenhum foi castigado.


José Eduardo Agualusa (in Nação Crioula, 1997)

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