18 outubro 2007

...a propósito de sonhos e limitações...


...um texto que comprova que as limitações físicas são superáveis... basta querer... e que ser "coitadinho", não nos faz sentir bem, nem aos que nos rodeiam... e que o que precisamos é mudar a nossa forma de pensar e a nossa vida... até porque "ser coitadinho" está fora de moda...




"Fui visitar Orlando Massango com um aperto no peito. Eu sabia que o ia encontrar diminuído. Uma mina lhe tinha arrancado uma perna. Havia na minha visita uma qualquer coisa de fúnebre, como se, com a perna, tivesse ido uma inteira vida. Como se cada parte do nosso corpo tivesse a sua própria alma.

Orlando é apenas um entre muitos dos mutilados em Moçambique. No chão moçambicano, a mão da guerra semeou milhões de minas. Milhares foram já retiradas desde que, em 1992, se estabeleceu a paz. Mas muitas outras ainda estão activas e existem regiões onde nem sequer estão mapeados os campos minados. As cheias que nos assolaram (e, de novo, assolam) fizeram deslocar centenas destes engenhos para regiões de grande densidade populacional. Eu próprio, que trabalho no campo como biólogo, viajo sempre com o coração nas mãos. Vale-me o ensinamento de Orlando:

- À vez, vamos indo. Às vezes, vamos mesmo.

Naquele momento, porém, a minha angústia era outra. No longo caminho que me separava da aldeia de Orlando Massango, me ia preparando: não podia, em mim, transparecer um sentimento de compaixão. Havia que sorrir, improvisar naturalidade. Que ele parecia ter um radar especial para captar a mínima comiseração.

Quando cheguei a sua casa não o encontrei. Na praça, junto ao mercado, perguntei por ele. Uma voz espreguiçada me disse:

- Orlandinho? Está no campo de futebol.

Pobre moço, julguei. Ele que sempre sonhara ser um jogador de craveira internacional se via agora remetido à passiva condição de espectador.

- Quem joga? perguntei.

- É a equipe dele.
A resposta me surpreendeu. A equipe dele? Sim, confirmaram, a sua equipe. Mas o que era ele, o treinador? Qual? Ele era o guarda-redes. Mais ainda: o capitão do clube, próprio.

Apressei o passo para assistir ao que restava do jogo. E ali vi Orlando Massango, empenhado a corpo inteiro, guarda-redes completo. Ao longe, encostado a um poste da baliza, dele não transparecia sinal de inferioridade física. Orlando se fazia à bola, mergulhando aos pés dos adversários, voando para os cantos da baliza.

No final do jogo, ele me abraçou. No momento, deixou escapar um desequilíbrio. Segurei-o com força para que não tombássemos ambos. Mas minha alma já perdera o receio. Dispensavam os cuidados e as aparências. Orlando estava vivo, nem ele nem o seu sonho haviam sido derrotados. E ele até brincou:

- Se eu tivesse duas pernas, então o adversário havia de reclamar que tínhamos superioridade numérica.

Rimo-nos. Naquele riso atirávamos para trás das costas o hastear da miséria, o embandeirar do sofrimento. Depois, ele me levou a um campo de deficientes de guerra, a pouca distância de sua aldeia. Ali, olhando outros mutilados eu revi o riso de Orlando, celebrando a vida e a possibilidade de recomeçar depois da desgraça. Como se fosse já cultura moçambicana o poder de superar a queda, sacudir a poeira e
retomar a estrada.

Foi isso que vi que, em todos, redescobri: a negação da condição de mutilado. Aqueles homens e mulheres eram ainda produtores de alegria, partilhando connosco a nossa integral humanidade. O que neles estava ausente era o raspar da ferida, a ideia de enviuvar da própria vida. A força de se refazer, a habilidade de se reinventar permanecia intocável. A crueldade dos conflitos não tinha sido capaz de alterar este potencial de esperança. O crime feito regime e o negócio sujo das armas, longe de ficarem suavizados defronte a esta resposta de ternura, ficavam ainda mais expostos perante a nossa condenação. Mesmo que ao negócio da guerra se sucedesse a guerra dos negócios.

E é aquele riso de Orlando Massango que ainda em mim ressoa. Mesmo que aceso por tristeza, esse riso que resiste é a melhor arma contra a própria guerra. Agradeço a Orlando esta dádiva de esperança, este recado que agora endereço contra os fabricadores de morte. Nesse areal onde uma aldeia inventou um campo de futebol, o meu amigo Orlando é um guarda-redes a corpo inteiro. E já ninguém lhe rouba o sonho de ser internacional. "


-Mia Couto-

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