02 novembro 2007

A balada do 7º A...




Há alturas em que o silêncio é tão insuportavelmente ruidoso que a
única coisa de que sou capaz é deitar-me na cama, mesmo vestido, com
sapatos e tudo, puxar os cobertores para cima, tapar a cabeça com o
travesseiro e apertar as orelhas nas mãos até deixar de ouvi-lo. É
então que principio a dar conta do bater do meu sangue nas têmporas,
bum bum bum, mecânico, pausado, indiferente a mim, dá ideia que nem o
próprio corpo me pertence, sou apenas estas palmas que tentam impedir
o silêncio e fechando os olhos principio a fazer parte da noite. No
apartamento ao lado a rapariga que também vive sozinha e às vezes
encontro no elevador a cumprimentar-me de olhos baixos sentirá o mesmo
que eu? De tempos a tempos recebe a visita de um homem e discutem aos
cochichos. No outro dia, através da parede, dei com ela a pedir


- Por favor, por favor

a seguir o sonzinho agudo de uma chávena que se quebra, e a seguir
nada a não ser o homem a ir-se embora porque a porta se abriu e fechou
e me apercebi de passos que quase corriam.

Através da caliça e dos tijolos deu-me a impressão que a rapariga a
chorar. Se calhar enganei-me: ficou diante da porta a passar os dedos
na cara compondo as feições. Existem algumas coisas que podemos
endireitar com um gesto. Os domingos não, e é dos domingos que se
trata quando, a seguir ao almoço, as horas se arrastam sem fim, os
ponteiros não mudam no mostrador do relógio, nenhum telefonema nos
salva de nós mesmo e para ali ficamos, na sala, a perguntar porquê.
Porquê o quê? Não sabemos. Apenas a perguntar porquê.

Se reflectir um bocadinho não tenho razões de queixa da vida. O
trabalho, o carro, a minha mãe ainda, coitada, cercada de fotografias,
a regar as plantas no lugar onde passei a minha infância e onde o meu
pai morreu, tão discreto e calado, sem aborrecer ninguém, instalava-se
na borda dos assentos como as pessoas nas cadeiras de napa, com uma
mesa de revistas ao meio, à espera que a cabeça da empregada do médico
anuncie
- Faça o favor de entrar
e então levantam-se com os sobrescritos das análises, levando-as a
diante de si, à maneira de credenciais diplomáticas, numa mistura de
esperança e de medo. Na mesma mistura de esperança e de medo
(que esperança, que medo?) que habitava o meu pai e que ele, se pressentia que o espiávamos,
tentava, desajeitado, embrulhar num sorriso. Mal, porque uma pontinha
de esperança e de medo, principalmente de medo, saíam sempre de um
canto da boca. Quem me garante que não apertava as orelhas com as mãos
igualmente?

Começa a escurecer agora. Os automóveis acendem os faróis, aí estão os
candeeiros na rua, a vitrina da loja de roupa a cintilar. O que fará
neste momento a rapariga do apartamento ao lado? Se calhar encosta a
testa à janela, se calhar aproveita para engomar a roupa da semana, se
calhar

- Por favor, por favor

espera que o homem a visite. Um homem da minha idade (verifiquei pelo oculozinho)
a ajeitar o cabelo com a palma, preocupado com a gravata, os sapatos,
a esfregar três vezes cada sola no capacho e ela, invisível, a segredar

- Depressa

ou então ela um braço que lhe puxa o casaco, a manga de uma blusa nova
que não conheço, uma pulseira que não usa no elevador, as unhas
pintadas de propósito que o homem nem nota. Desce os estores num ruído
de costelas que se amontoam, põe uma canção qualquer na aparelhagem

- A nossa música, lembras-te?

espera no sofá a arranjar a saia e o decote, numa gargalhadinha tensa.
Não acredito que fizesse o mesmo por mim: como sempre que me encontra
fica de olhos baixos nem sonha como sou dos joelhos para cima. Ao
alcançarmos o zero escapa-se de lado evitando roçar na minha sombra. O
carro dera, velhíssimo, produz um ruído de máquina de lavar na agonia,
trambolhando roupa antiga aos sacões. Leva o almoço numa caixa de
plástico (uma caixa de plástico e uma maçã)
no interior de uma saquinho de supermercado, verifica o correio com
uma chavezita minúscula: que eu tenha reparado não lhe mandam cartas.

Lá fora, para além do meu travesseiro e dos meus cobertores, aposto
que o ruído do silêncio continua. Não faço tenções de me levantar da
cama. Nem de jantar. Quando muito, se tocarem à campainha e tivesse a
certeza que era a rapariga, atendia. Este é o 7º A, ela mora no 7º B,
há também o 7º C e o 7º D. O 7º D tem desde há meses uma bicicleta de
criança no patamar, dessas com duas rodinhas pequenas a
equilibrarem-na, Se o casal do 7º D verificasse pelo óculo dava com a
rapariga a esfregar três vezes cada sola no capacho, eu, invisível, a
segredar

- Depressa

eu um braço que lhe puxa a manga da blusa nova e as unhas pintadas de
propósito, eu a embrulhar, no sorriso que herdei do meu pai, uma
mistura de esperança e de medo que ela talvez entenda.


-António Lobo Antunes-

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