10 novembro 2007

...tinhas de arranjar maneira... de seres todos e nenhum...

Tinhas de arranjar maneira. De me fazeres começar o dia baldeando-me de novo para os teus lados. Maneira, de me pores a espreitar pelo retrovisor, a vasculhar as ruas, a medir o perfil de quem pára ao meu lado no sinal. De me fazeres faroleira, a apontar para o mar de carros que engole a cidade a cada manhã embaciada, vasculhando marcas, modelos, matrículas, sinais de alerta. Tinhas, de me levares a controlar este, o outro, quem sabe aquele ali que dobra apressado os cantos da esquina e rasa a velhota que, pendurada num saco de xadrez por onde espreita uma couve portuguesa, se atreve à passadeira. De arranjar maneira, enquanto sorvo o galão a escaldar cuspindo vitupérios (estúpido, pedi morno), trinco a torrada do meio ou começo a ler o jornal, do fim para o princípio (nunca leio o mais importante). De seres este homem à minha frente, de ombros magros alteados pelos chumaços do casaco, como se dissesse que não sabe, que não se importa, com um traseiro triste que mal enche as calças e umas mãos de aranha que não têm lugar vago nos esconderijos do corpo, nervoso, miudinho. Tinhas de arranjar maneira, de me dares o troco na banca dos jornais, enquanto me espreitas por detrás de notícias sobre meninas desaparecidas, ditaduras que oprimem e ditadores que enlouquecem. Maneira, de seres todos e nenhum. De voltares à minha vida, arranjada, ordenada, cronologicamente serena, perfeitamente editada como um bom filme dos óscares (voltaste à minha vida). Agora, arranja maneira, diz que sonhei, que estou a inventar.

In "Um amor atrevido"

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