06 abril 2008

...como achava lindas as rugas do teu pescoço, o que o tempo começava a mudar em ti...





Dulcinha



O que eu gostava que estivesses aqui, sentir-te na sala, no quarto, ouvir os teus passos no corredor, assistir ao teu sorriso ao entrares depois de duas voltas à chave por causa dos ladrões
(sempre tiveste medo dos ladrões)

e apesar das duas voltas à chave a experimentares a solidez da porta, desconfiada, séria, a guardares a chave na carteira

(que confusão a tua carteira, óculos escuros agenda facturas óculos de ver ao perto estojo de pintura aspirinas)

e então sim, impedidos os ladrões de chegarem, a sorrires-me, um sorriso diferente dos outros porque, do lado esquerdo da boca, uma pontinha de dentes a assomar. Do lado direito um sorriso normal e do lado esquerdo um canino ou isso, o vértice de um canino, a brilhar. Talvez haja quem ache isso feio, eu acho lindo. Como achava lindas as rugas do teu pescoço, o que o tempo começava a mudar em ti. Não é que envelhecesses, não envelhecias ainda, ninguém envelhece aos quarenta e três anos, a idade apenas a tornar-se mais nítida e a aumentar-te o encanto. Mas, ao descalçares-te, que juventude nos teus pés e eu maravilhado que cinco dedos em cada um como as outras pessoas, maravilhado que tu humana, terrestre, ao meu alcance embora nada estremecesse no teu corpo ao abraçar-te, ficasses dura, resistindo-me a fingir que não resistias, arranjando uma desculpa qualquer para te levantares e escapar aos meus beijos, à mãozinha que eu queria suave se te acariciava o pescoço tentando dizer coisas que não era capaz de dizer ou soprando

– Sua marota, sua marota

consciente de ser vulgar e pateta. Se fosse capaz de encantar-te, excitar-te, fazer-te rir. Não sou delicado

– Estás a fazer-me cócegas, que maçada

os gestos não me obedecem, tornam-se pesados e sem graça, o meu bigode enerva-te eu que não me imagino sem bigode, torno-me impensável sem bigode, pareço nu de uma nudez vagamente obscena, vagamente repulsiva, demasiado nariz, demasiadas bochechas, demasiadas orelhas, demasiadas saliências na cara, um exagero de feições que o bigode

(vá lá)

disfarça, tu, cruel

– O teu bigode cheira à sopa de ontem, juro

e eu correr para o lavatório a fim de o libertar das ruínas do caldo verde. No espelho, por cima da torneira, um par de olhos lastimosos. Meus. Um par de olhos que pedem, mudos

– Dulcinha

que na tua ausência continuam a pedir mudos

– Dulcinha

enquanto o caldo verde do bigode fareja a saudade, o pobre. Aos sábados vou-lhe aparando as pontas com uma tesoura cuidadosa, depois empurro os pêlos para o ralo com o indicador e água. Aos domingos ainda encontro um na loiça, a resistir. Pega-se-me ao indicador, vejo-me grego para me libertar dele, acabo por limpá-lo nas calças do pijama. O meu pai, que faleceu há três anos, usava bigode também: o dele branco e o meu castanho a conversarmos enquanto folheavas uma revista, suspirando. De enfado? De ternura por mim? Dessas melancolias inexplicáveis das mulheres? Tão estranhas as mulheres: ausentam-se permanecendo, regressam partindo. O meu pai no sofá, a minha mãe na moldura, coitada: uma pneumonia traiçoeira levou-a numa semana. Perguntou

– Não estou lá muito bem, pois não?

e minutos depois desapareceu toda atrás das pálpebras. O meu pai pegou-lhe no pulso

(o meu pai era médico)

largou-o no lençol onde o pulso caiu, feito objecto, uma frase sem palavras borbulhou no bigode e acabou-se. Sobrou um silêncio grave no apartamento, que o pêndulo do relógio da cómoda cortava às fatias. O relógio está comigo agora, mas não corta o silêncio às fatias porque não lhe dou corda e detesto que tratem o silêncio como se fosse uma torta ou um bolo-rei. Se lhe metesse a faca encontrava a prenda do teu abandono dentro. Deixá-lo estar assim inteiro com o abandono escondido. Se conseguisse articular

– Amo-te

ou

– Preciso de ti

ou

– Fazes-me falta

e não consigo. Tusso. Assoo-me. Suspiro como tu embora não folheie revistas. Permaneço a alisar o bigode diante do futebol, do noticiário, de uma senhora que dá explicações sobre sexo com um casal ao lado a exemplificar, na mesma falta de entusiasmo que nós na época em que vivíamos juntos. E no entanto

(quem me ajuda a entender isto?)

as manobras do casal exaltam uma parte minha, lá em baixo, a que tento não dar importância. Se aqui estivesses tornava a tentar o teu pescoço, a medo. A senhora do sexo garante que o pescoço sabiamente agarrado agrada às mulheres. O problema consiste em agarrar sabiamente. Exercito-me com os dedos no vazio, aperto, alargo, aperto. Cochicho

– Dulcinha

e os ponteiros do relógio, nas cinco para a uma, parecem pedir socorro. Enfio os dedos no bolso, arrependido. No andar de cima os sapatos de uma criança que não pára de trotar desesperam-me. Nunca dormem, senhores, trotam a vida inteira. Que energia.

Voltando ao princípio o que eu gostava que estivesses aqui, mesmo com o medo dos ladrões e as duas voltas de chave. Qualquer dia o meu bigode branco, qualquer dia poucos cabelos no cocuruto. O meu pai penteava-os um a um, em minúcias de ourives, numa arquitectura complicada, segurava aquilo tudo com o cimento da laca. Sem vento aguentava-se. Com vento tombava-lhe sobre o ombro. Paizinho. Usava um chapelito com uma pena, assemelhava-se a um estrangeiro, um inglês, um sueco. Agora assemelha-se a um montinho de ossos, penso eu. Tu não, Dulcinha. Tu continuas viva, e a prova que continuas viva está em que daqui a nada oiço o elevador a chegar e vejo a ponta dos dentes no lado esquerdo da boca. A senhora do sexo, bem vestida, séria, disserta acerca de um truque que não conheço. Hei-de praticá-lo contigo apesar do caldo verde do bigode. Oxalá a hérnia das minhas costas aguente. Oxalá que eu consiga

– Amo-te

sem te fazer cócegas nenhumas. No fim de contas, pensando bem, não éramos infelizes, pois não?




-António Lobo Antunes-

2 comentários:

António Pereira disse...

O homem é um génio, não fosse a sua escrita ser muito maçuda tê-lo-ia lido mais vezes

Pêndulo disse...

depende do que se considera "maçudo"... e as crónicas são francamente boas.

mas cada um sabe de si... às vezes...