05 abril 2008

...foi para casa como uma foragida do mundo...







A Bravata



Z. M. sentia que a vida lhe fugia por entre os dedos. Na sua humildade esquecia que ela mesma era fonte de vida e de criação. Então saía pouco, não aceitava convites. Não era mulher de perceber quando um homem estava interessado nela a menos que ele o dissesse - então se surpreen­dia e aceitava.

De tarde - era primavera, primeiro dia de primavera - foi visitar uma amiga que a pôs em brios. Como então ela, uma mulher feita, era tão humilde? como é que não percebia que vários homens a queriam? como não percebia que devia, dentro de sua própria dignidade, ter um caso de amor? Disse ainda que a vira entrar numa sala onde todos eram conhecidos. E por acaso nenhum dos presentes chegava a seus pés. E no entanto entrou tímida como ausente, como uma corça de cabeça baixa. "Você precisa andar de cabeça levantada, você tem que sofrer porque você é diferente, cosmicamente diferente, então aceite que você não pode ter a vida burguesa, e entre numa sala com a cabeça levantada." "Mas entrar sozinha numa sala cheia de gente?" "Exatamente. Você não precisa de companhia para ir, você mesma é bastante."

Lembrou-se que no fim da tarde havia uma espécie de coquetel para os professores primários, em férias. Lembrou-se da atitude nova que de­sejava, não combinou a ida com nenhum professor ou professora ­arriscar-se-ia toda só. Vestiu um vestido mais ou menos novo, mas a coragem não vinha. Então - só o entendeu depois - pintou demais os olhos e demais a boca até que seu rosto parecia uma máscara: ela estava pondo sobre si mesma alguém outro: esse alguém era fantasticamente desinibido, era vaidoso, tinha orgulho de si mesmo. Esse alguém era exatamente o que ela não era. Mas na hora de sair de casa, fraquejou: não estaria exigindo demais de si mesma? Toda vestida, com uma másca­ra de pintura no rosto - ah persona, como não te usar e enfim ser! -, sem coragem, sentou-se na poltrona de sua sala tão conhecida e seu co­ração pedia para ela não ir. Parecia que previa que ia se machucar muito e ela não era masoquista. Enfim apagou o cigarro-de-coragem, levantou-­se e foi.

Pareceu-lhe que as torturas de uma pessoa tímida jamais foram com­pletamente descritas. No táxi que rolava ela morria um pouco.

E ei-la de repente diante de um salão enorme com talvez muitas pes­soas, mas pareciam poucas dentro do descomunal espaço onde se pro­cessava como um ritual moderno o coquetel.

Quanto tempo suportou de cabeça falsamente erguida? A máscara a incomodava, ela sabia ainda por cima que era mais bonita sem pintura. Mas sem pintura seria a nudez da alma. E ela não podia se arriscar nem se dar esse luxo.

Falava sorrindo com um, falava sorrindo com outro. Mas como em todos os coquetéis, nesse era impossível a conversa e quando ela viu estava de novo sozinha.


Viu um homem que tinha sido seu amante. E ela pensou: por mais amor que este homem tenha recebido, fui eu que lhe dei toda a minha alma e todo o meu corpo. Os dois se olharam, perscrutaram-se, ele com certeza espantado com a máscara de pintura. Não soube o que fazer senão perguntar-lhe se ele era seu amigo, se podia ser. Ele disse que sim, para sempre.

Até que sentiu que não suportava mais manter a cabeça de pé. Mas como atravessar a enorme extensão até a porta? Sozinha, como uma fugida? Então em meias palavras confessou seu drama a uma das profes­soras e ela levou-a pela enorme extensão até a porta.

E no escuro da noite primaveril ela era uma mulher infeliz. Sim, era diferente. Mas sim, era tímida. Sim, era supersensível. Sim, vira um amor passado. O escuro e o perfume da primavera. O coração do mundo batia-lhe no peito. Sempre soubera sentir o cheiro da natureza. Achou finalmente um táxi onde se sentou quase em lágrimas de alívio, lem­brando-se que em Paris lhe acontecera o mesmo porém pior ainda. Foi para casa como uma foragida do mundo. Era inútil esconder: a verdade é que não sabia viver. Em casa estava agasalhante, ela se olhou ao espe­lho quando estava lavando as mãos e viu a persona afivelada no seu rosto: a persona tinha um sorriso parado de palhaço. Então lavou o rosto e com alívio estava de novo de alma nua. Tomou então uma pílula para dormir. Antes que chegasse o sono, ficou alerta e se prometeu que nunca mais se arriscaria sem proteção. A pílula de dormir começava a apaziguá-la. E a noite incomensurável dos sonhos começou.

-Clarice Lispector-

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