12 abril 2008

...o que nos diz respeito é estarmos juntos num sítio qualquer, não importa qual, com mais silêncio que palavras...

...ACÁCIOANTÓNIOACÁCIOANTÓNIO...


Faz hoje oito dias morreu um grande amigo. À noite arranjei coragem para ir vê-lo à igreja: estava o caixão, estava a fotografia diante do caixão mas o Acácio não estava, nem era pessoa para se meter dentro daquela caixa, com aquele pano por cima. Tive de procurar dentro de mim para encontrá-lo e achei-o a sorrir
– António

dizia ele como de costume

– António

e continuou a dizer

– António

em mim, a falar com os berlindes que parecia trazer sempre na boca. Uma amizade desde os dezoito anos é obra. Durante a guerra escrevíamos cartas um ao outro, depois da guerra não era preciso escrever cartas, falávamos. Convidavame imensas vezes para sua casa e como sou bicho do mato ia pouco: não gosto de muita gente junta, não sei conversar, penso noutra coisa, desinteresso-me. Ia quando ele me jurava não haver mais ninguém.

– Não te convido porque já sei que és bicho

e eu com pena de ser bicho. Meu Deus agradava-me tanto ser sociável. Quase todas as pessoas são sociáveis: porque raio tenho de cumprir este destino de ouriço? Na igreja procurei um cantinho para ficar a sós contigo. Apetecia-me chorar. Mas vinham cumprimentar-me e aguentava-me. Repetia o teu nome para dentro

– Acácio

sem os berlindes com que tu

– António

e a tua mão no meu ombro nos abraços meio esquivos, cheios de pudor, que são os teus e apesar disso, caramba, foste talvez o homem que mais me mexeu no corpo, tiraste-me dúzias de sinais ao longo do tempo. Que raio de pele a minha, uma Via Láctea de pontinhos: Ursa Maior, Ursa Menor, Cassiopeia, Sagitário, não me faltava nada. Digo estas coisas, amontoo palavras para me defender da emoção.

Chega de pieguices, dizia o meu pai, chega de pieguices. As pessoas a quem nunca morreu um amigo ponham o dedo no ar.

Acácio.

– Um dia publico as tuas cartas ameaçavas tu do meio dos berlindes. O pior é que ameaçavas a sério: cartas de rapazes em África e a tua mão, um segundo, no meu ombro. Um segundo apenas. Por isso me admirou quando ao ir ao hospital visitar-te ficarmos de mão dada. Quer dizer ficaste a apertar-me a mão durante séculos e eu fiquei a apertar-te a mão durante séculos. Dois anos depois foi a tua vez de me visitares no hospital. Entravas de bata, tu director de serviço, eu doente, exausto.

Achava-me desesperado e a sofrer mas senti tanto a tua amizade. E agora a caixa, o pano, o retrato, agora isto. Ao sair da igreja vieste comigo. No sábado jantei com a Rita e o Henrique, teus amigos também. Tu depenaste-me a Via Láctea da pele, e o Henrique depenou-me os intestinos. Vocês dois são os únicos que me coscuvilharam o corpo. A partir do momento em que adoeceste nunca mais consenti que me tirassem um sinal: era um direito que só a ti pertencia. Lá me fardava eu de verde, lá me estendia na mesa e tu a arrancares-me estrelas das costas, da cara, dos braços.

Estrelas, planetas, pedregulhos siderais. Olha, neste momento estou sentado na tua casa, diante da piscina. Fosse qual fosse a nossa idade tínhamos dezoito anos. A mesma mulher a dias, durante bastante tempo, a segredar-me

– O senhor doutor é tão bom

não senhor professor, o senhor doutor é tão bom. E és. As minhas filhas, as minhas sobrinhas

– Padrinho Acácio

e quando o João recebeu os irmãos para jantar naturalmente chamou-te a ti. Os irmãos dele e tu. Não: os irmãos dele. O que é a morte, padrinho Acácio? O duque de Orleans não acreditava em tal criatura nem aceitava que a mencionassem na sua presença. Uma ocasião o embaixador de não me recordo donde disse

– O falecido rei de Espanha

o duque logo, furioso

– Falecido?

e o embaixador resolveu o embaraço respondendo

– Monsenhor, é um título que eles se dão.

Em francês, que é mais chique

– Monseigneur, c'est un title qu'ils prennent

Portanto essa história de falecido é um título que tu prenaste. Quando o Henrique me segredou

– Tenho uma notícia triste para ti

disse de imediato

– O Acácio?

disse de imediato

– Não

e fiquei sem ver nada uma porção de minutos. Agora vejo. Vejo a igreja, a caixa, o pano, o retrato. E vejo-nos a sair dali

– Vamos sair daqui

porque não nos diz respeito, palavra, não nos diz respeito. O que nos diz respeito é estarmos juntos num sítio qualquer, não importa qual, com mais silêncio que palavras. Até no silêncio os berlindes na boca, o cabelo branco desde os vinte anos. Abundante. Bonito. Também alguma coisa tinhas que ter bonito. Estou a brincar. Não faças essa cara que estou a brincar: graças a Deus todos os meus amigos são lindos. Isto não é uma crónica, é uma carta, como aquelas que nos escrevíamos em África. Não a publiques nunca, visto que é só para ti. E não quero, nem por um segundo, que me julguem lamechas. Você tinha razão, pai: chega de pieguices.


António Lobo Antunes

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