28 abril 2008

...sou um monte intransponível no meu próprio caminho...





Era raro ele se mostrar claramente mais sério. Lóri reconhecia que ele tinha concentração, intensidade, delicadeza e discrição, embora tudo fosse quase sempre encapado por um tom leve para não mostrar emoção.

— Sabe, Lóri, disse ele agora sorrindo. Depois que encontrei você umas três ou quatro vezes — por Deus, talvez tenha sido exatamente da primeira vez que vi você! — pensei que poderia agir com você com o método de alguns artistas: concebendo e realizando ao mesmo tempo. É que de início pensei ter encontrado uma tela nua e branca, só faltando usar os pincéis. Depois é que descobri que se a tela era nua era também enegrecida por fumaça densa, vinda de algum fogo ruim, e que não seria fácil limpá-la. Não, conceber e realizar é o grande privilégio de alguns. Mas mesmo assim não tenho desistido. Não, continuou ele falando como se ela não estivesse ali, não é mesmo com bons sentimentos que se faz literatura: a vida também não. Mas há algo que não é bom sentimento. E uma delicadeza de vida que inclusive exige a maior coragem para aceitá-la.

Lóri ficou quieta. Percebia que ele pensava alto e que ela não precisava entender. Mas era tão bom ouvir. Ela também quis se fazer ouvir e disse com alguma voluptuosidade na voz, o que nada combinava com ela e fez com que ele erguesse em interrogação as sobrancelhas:

— Estive lendo um dia um filósofo, sabe. Uma vez segui um conselho dele e deu certo. Era mais ou menos isto: é só quando esquecemos todos os nossos conhecimentos é que começamos a saber. Então pensei em você que não fala uma palavra de filosofia comigo e quando estamos juntos, pois é, quando estamos juntos você até parece um sábio que não quer mais ser sábio e até, sabe, até se dá ao luxo de disfarçadamente se angustiar como qualquer um de nós.

Ulisses estava atento, imóvel. Lóri continuou:

— Parece tão fácil à primeira vista seguir conselhos de alguém. Seus conselhos, por exemplo. Já agora ela falava sério:

— Seus conselhos. Mas existe um grande, o maior obstáculo para eu ir adiante: eu mesma. Tenho sido a maior dificuldade no meu caminho. E com enorme esforço que consigo me sobrepor a mim mesma.

Ela jamais falara tantas palavras em seguida. Por isso queria evitar o principal. De repente porém notou que se não dissesse o final, nada teria dito, e falou:

— Sou um monte intransponível no meu próprio caminho. Mas às vezes por uma palavra tua ou por uma palavra lida, de repente tudo se esclarece.

Sim, tudo se esclarecia e ela surgia de dentro de si mesma quase com esplendor.

-Clarice Lispector-
in "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres"

Sem comentários: