06 maio 2008

...daí em diante ela já sabia pelo que esperar...

"Lóri só tinha um medo: de que Ulisses, o grande Ulisses cuja cabeça ela segurava, a decepcionasse. Como seu pai que a sobrecarregara de contraditórios: ele a transformara ela, sua filha, em sua protetora. E ela, na infância, não pudera olhar sequer para o pai quando este tinha uma alegria, porque ele, o forte, o sábio, nas alegrias ficava inteiramente inocente e tão desarmado. Oh Deus, o pai se esquecia por uns momentos que era mortal. E obrigava ela, uma menina, a arcar com o peso da responsabilidade de saber que os nossos prazeres mais ingênuos e mais animais também morriam. Nesses instantes em que ele esquecia que ia morrer, ele a transformava menina em Pietà, a mãe dos homens.
Mas com Ulisses estava sendo diferente. Ele nunca fora humilde no amor, por deslumbramento, se tornava humilde. Ela não soube como, de joelhos mesmo, ele a tinha feito ajoelhar-se junto a ele no chão, sem que ela sentisse constrangimento. E uma vez os dois ajoelhados ele enfim a beijou.
Ele a beijou demoradamente até que ambos puderam se descolar um do outro, e ficaram se olhando sem pudor um nos olhos do outro. Ambos sabiam que já tinham ido longe demais. E ainda sentiam perigo de entregarem-se tão totalmente. Continuaram em silêncio. Foi então deitados no chão que se amaram tão profundamente que tiveram medo da própria grandeza deles.
— Devagar, Lóri, devagar, temos a noite inteira, devagar.
Eles pareciam saber que quando o amor era grande demais e quando um não podia viver sem o outro, esse amor não era mais aplicável: nem a pessoa amada tinha a capacidade de receber tanto. Lóri estava perplexa ao notar que mesmo no amor tinha-se que ter bom senso e senso de medida. Por um instante, como se tivessem combinado, ele beijou sua mão, humanizando-se. Pois havia o perigo de, por assim dizer, morrer de amor.
E logo depois que o perigo passou, ele a beijou de novo sem nenhum medo.
— Como é que você se dava com sexo?
— Era a única coisa, disse ela, em que eu dava certo.
— Eu pressenti isto, disse ele, e de puro ciúme, feriu-a: quando te vi na rua pela primeira vez vi logo que você estaria bem numa cama.
A vitalidade de camponesa é que salvava Lóri de um mundo de emoções delicadas demais. Ela viu que ele a ferira por ciúme. E disse:
— Mas esta noite é a minha primeira vez.
No começo ele a tratara com uma delicadeza e um senso de espera como se ela fosse virgem. Mas em breve a fome de Lóri fez com que Ulisses esquecesse de todo a gentileza, e foi com uma voracidade sem alegria que eles se amaram pela segunda vez. E como não bastava, já que tinham esperado tanto tempo, quase em seguida eles se possuíram realmente de novo, dessa vez com a alegria austera e silenciosa. Ela se sentiu perdendo todo o peso do corpo como uma figura de Chagall.
Depois mantiveram-se quietos, de mãos dadas. Por um instante ela retirou a mão, acendeu um cigarro, passou-o para ele, e acendeu outro para si mesma — e depois tornou a pegar na sua mão. Logo ele apagou o cigarro. Estava escuro, como ela quisera, e eles calados. Nunca me sei como agora, sentia Lóri. Era um saber sem piedade nem alegria nem acusação, era uma constatação intraduzível em sentimentos separados uns dos outros e por isso mesmo sem nomes. Era um saber tão vasto e tranqüilo que "eu não sou eu", sentia ela. E era também o mínimo, pois tratava-se, ao mesmo tempo, de um macrocosmo e de um microcosmo. Eu me sei assim como a larva se transmuta em crisálida: esta é minha vida entre vegetal e animal. Ela era tão completa como o Deus: só que Este tinha uma ignorância sábia e perfeita que O guiava e ao Universo. Saber-se a si mesma era sobrenatural. Mas o Deus era natural. Lóri quis transmitir isso para Ulisses mas não tinha o dom da palavra e não
Quanto a ela, lutara toda a sua vida contra a tendência ao devaneio, nunca deixando que ele a levasse até as últimas águas. Mas o esforço de nadar contra a corrente doce havia tirado parte de sua força vital. Agora, no silêncio em que ambos estavam, ela abriu suas portas, relaxou a alma e o corpo, e não soube quanto tempo se passara pois tinha-se entregue a um profundo e cego devaneio que o relógio da Glória não interrompia.
Era noite cada vez mais escura e chovia muito. Embora sem vê-lo, reconheceu pela sua respiração pausada que ele dormia. Ficou de olhos abertos no escuro e cada vez mais o escuro se revelava a ela como um denso prazer compacto, quase irreconhecível como prazer, se fosse comparado com o que tivera com Ulisses. Ele estar dormindo ao seu lado deixava-a a um tempo sozinha e integrada. Ela não queria nada senão aquilo mesmo que lhe acontecia: ser uma mulher no escuro ao lado de um homem que dormia. Pensou por um instante se a morte interferiria no pesado prazer de estar viva. E a resposta foi que nem a idéia de morte conseguia perturbar o indelimitado campo escuro onde tudo palpitava grosso, pesado e feliz. A morte perdera a glória.
Lembrou-se de como era antes destes momentos de agora. Ela era antes uma mulher que procurava um modo, uma forma. E agora tinha o que na verdade era tão mais perfeito: era a grande liberdade de não ter modos nem formas.
Não se enganava a si mesma: era possível que aqueles momentos perfeitos passassem? Deixando-a no meio de um caminho desconhecido? Mas ela poderia sempre reter nas mãos um pouco do que agora conhecia, e então seria mais fácil viver não vivendo, mal vivendo. Mesmo que nunca mais fosse sentir a grave e suave força de existir e amar, como agora, daí em diante ela já sabia pelo que esperar, esperar a vida inteira se necessário, e se necessário jamais ter de novo o que esperava. Moveu-se de súbito na cama porque foi insuportável imaginar por um instante que talvez nunca mais se repetisse a sua profunda existência na terra. Mas, para a sua alegria inesperada, percebeu que o amaria sempre. Depois que Ulisses fora dela, ser humana parecia-lhe agora a mais acertada forma de ser um animal vivo. E através do grande amor de Ulisses, ela entendeu enfim a espécie de beleza que tinha. Era uma beleza que nada e ninguém poderia alcançar para tomar, de tão alta, grande, funda e escura que era. Como se sua imagem se refletisse trêmula num açude de águas negras e translúcidas."

-Clarice Lispector-
in "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres"

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