...a vida não tem desvios nem demoras...

Conheço os dias amargos em que a neve podia ter caído; as
horas estranhas, entre o branco e o negro, ouvindo o silêncio
que murmura com a noite. Ouço, então, a tua voz: e
por dentro dela as dúvidas que ela me traz, a angústia
que me impregna a alma, muito embora lhe possa opor os
argumentos da razão, a segurança de uma lógica absoluta
em que reconheço os vestígios de quem despiu
emoções e sentimentos. No entanto, dizes-me, o que
conta é o amor. Vejo o significado da palavra: o que
une um a outro ser, não importa em que circunstâncias.
Na sua abstracção, não preciso de mais nada para saber que a
realidade podia ser esta, se na realidade não fôssemos humanos,
e outras condições não se impusessem. Se o mundo fosse
à nossa medida, talvez nenhuma destas questões existisse; mas
temos de ir ver os dicionários, de procurar sinónimos para
cada palavra, de encontrar uma forma de dizer o que não se pode
dizer, agora que alguma coisa agoniza, enquanto te ouço.
Folheio os livros da noite. Abro-os nas páginas ímpares, em busca
do teu nome. Os cães ladram quando empurro o portão da vida,
e te puxo para dentro da memória em que nos perdemos de quem somos.
Construí-te uma alegoria de gestos sem saída; e agora que
saíste, fiquei preso a cada imagem, como se não fosses tu a única
imagem. Mas continuo a ler, e no fim do livro salto as folhas
em branco, esperando que sejas tu a que me espera nesse quarto
do fundo, onde a janela continua fechada, e o vento se transformou
em canto obscuro. Por que não voltaram os cães a ladrar? Que sombras
me impedem de empurrar esse portão, como se a tua memória o
prendesse? Tudo isto para te dizer que não sei onde estou, nem que
direcção tomar para sair do labirinto, agora que os rios secaram,
nesta margem do inferno, e o azul da ausência me apaga o teu rosto.
Como se não fosse o amor o único assunto que nos
ocupa. Discuto-o contigo. Pratico uma dialéctica de interrogações,
deixando as certezas penduradas nos cabides do ser. Amo a tua angústia,
digo-te. É assim que te quero libertar dela, roubando-a para os meus
braços, enquanto os enigmas da tarde se desfazem. Talvez me perca,
voltando a ouvir o vento que entra pela janela aberta, nesse quarto do
fundo para onde a tua memória me empurra, sem me importar com as
árvores secas do quintal, com os passos de quem não encontra a saída
do labirinto, com essa respiração que pontua o silêncio, soletrando uma
resposta possível para a angústia que me deixaste. Então, fecho
esse livro. Deixo de procurar o teu nome nas páginas ímpares; e
escrevo-o nas folhas da noite, rasgando as capas de fogo, até chegar
aos teus lábios. «Dizei-me, peço-lhes, as palavras limpas de cinza e
de musgo.» - «Outras definições», dizes-me. Como se as pudesse
encontrar, aqui, onde nenhum cão ladrou, nesta noite que desce no teu silêncio.
«Fala-me, então: não deixes que esse silêncio ocupe o lugar em
que deviam crescer as palavras; nem que um vazio se prolongue por
dentro das mãos.» E lembro-me dessa margem para onde me
levaste; das tuas hesitações; e de como nos perdemos, ao voltar
à cidade. O tempo levará esse tempo, como a água do rio levou
outras águas, e assim por diante, até nada ficar de ambos.
Mas este amor?, acaso algum rio o poderá arrastar para um mar de esquecimento,
ou alguma água afogar a sua respiração? Como esquecê-lo, quando
ainda o guardo, e ele me traz de volta a tua imagem? Pedes-me que
a abandone. Perdê-Ia-ei - sombra nas ermas memórias da noite - ou
poderei encontrar-te - corpo que sai de uma esquina do verso,
atravessando a rua da estrofe - nesta esplanada em que te espero,
ouvindo a queixa matinal do outono? E é como se tivesses chegado,
trazendo na tua voz a luz branca da madrugada, para que eu te peça
um último sorriso, agora que o café vai fechar para o inverno.
Dir-me-ás que as coisas são assim. A vida não tem desvios
nem demoras. Sairemos de casa, amanhã, para cumprir os hábitos
de sempre. Nenhum de nós irá procurar o outro; nada do que
dissermos dirá o que nos dividiu. Mas poderia ser de outro modo,
isto é, poderiam os nossos caminhos ir dar ao centro? Como se eu
e tu não nos tivéssemos perdido de nós no próprio centro destas
palavras; e não soubéssemos em cada encontro que o fim
estava no princípio. Abro então a última porta da casa; e deixo-a
aberta para um dia, que há-de ser o dia em que os cães voltem a ladrar,
quando por ali passarmos, sem saber se estamos a sair, ou a entrar.
Nuno Júdice
(...por vezes encontramos escrito o que sentimos... mas desta vez não quero deixar portas abertas...)



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