18 junho 2010

...deixa-te levar pela criança que foste...





...a criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem. A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não a interrogava, não dizia nem pensava, por estas ou outras palavras: «Que bela paisagem, que magnífico panorama, que deslumbrante ponto de vista!» Naturalmente, quando subia ao campanário da igreja ou trepava ao topo de um freixo de vinte metros de altura, os seus jovens olhos eram capazes de apreciar e registar os grandes espaços abertos diante de si, mas há que dizer que a sua atenção sempre preferiu distinguir e fixar-se em coisas e seres que se encontrassem perto, naquilo que pudesse tocar com as mãos, naquilo também que se lhe oferecesse como algo que, sem disso ter consciência, urgia compreender e incorporar ao espírito...




José Saramago

(in "As pequenas memórias")




(Azinhaga (Golegã) 16.11.1922 - Lanzarote, 18.06.2010)


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