04 setembro 2010

...eu gosto da praia à hora das gaivotas...

"Ela notou que ainda não adormecera, pensou que ainda haveria de estalar em fogo aberto. Que terminaria uma vez a longa gesta¬ção da infância e de sua dolorosa imaturidade reben¬taria seu próprio ser, enfim, enfim livre! Não, não, nenhum Deus, quero estar só. E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente seguramente inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, so¬bretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mes¬ma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! o que eu disser soará fatal e inteiro! não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fun¬dido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreen¬são de mim mesma em certos momentos brancos por¬que basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo."

Clarice Lispector
in "Perto do Coração Selvagem"



...as férias estão a chegar ao fim. Depois de almoço, apeteceu-me ir até à Figueira e nada como ter uma boa surpresa ao chegar à praia: menos de 20 pessoas no areal, uma temperatura agradável e pouco vento... e poder ficar até à hora das gaivotas, que andavam a tomar conta do seu território, foi uma boa forma de acabar as férias... a juntar a isso, conseguir acabar um dos livros empilhados na mesa (Perto do Coração Selvagem), marcados a meio... acho que mais uns dias assim resolviam muitos dos meus problemas... e de facto, preciso de tempo para mim: essa é a resolução deste novo ano de trabalho! Esta correria constante desgasta e sei que alguns dos problemas de saúde são agravados pelo stresse...

...mas dei por mim a pensar na minha vida e senti-me bem. Bem comigo e com o mundo. Tenho problemas como toda a gente, mas comparados com a tormenta que enfrentei há 6 anos atrás, estes problemas do dia-a-dia parecem-me insignificantes. Acho que uma hecatombe consegue mudar a nossa perspectiva de vida e tudo afinal é tão relativo!!! Creio que resolvi todos os problemas pessoais que tinha e exorcisei os meus fantasmas. Isso tranquilizou-me. Algumas pessoas passaram pela minha vida e quase não deixaram marca. E como percebi que estava melhor afastada, afastei-me de vez. Outras, deixaram grandes marcas. A maioria continua a fazer parte da minha vida e sabe que pode contar comigo até debaixo de água. E eu tenho contado com eles. Sempre que estou numa fase de maré vaza, aparece um sms ou uma mensagem providencial. Outros, fizeram parte da minha vida, foram importantes num dado momento e de certa forma ajudaram-me a chegar até onde estou. Mas sairam numa estação qualquer e já não fazem parte desta minha longa viagem. E este comboio não passa duas vezes na mesma estação. As circunstâncias mudam e fazem-nos mudar também. É apenas a lei da vida. Não se pode querer retroceder no tempo e imaginar uma dada pessoa como era há 6 ou 7 anos atrás. Nem eu sou igual ao que fui. Nem voltarei a ser exactamente igual ao que sou agora.
Em termos de trabalho, nem tudo é perfeito, mas neste último ano consegui colher alguns frutos de muitos anos de trabalho: publicar trabalho ainda de doutoramento, que estava na gaveta, conseguir ir a congressos internacionais, voltar outra vez a pensar em investigação... ver finalmente algum do muito trabalho reconhecido e perceber que consigo atingir os meus objectivos se me esforçar e acima de tudo se acreditar em mim, pois ao contrário do que várias vezes me fizeram sentir, não tenho menos valor que outros (possivelmente apenas não serei tão ambiciosa e costumo mostrar o meu jogo sem fazer "bluff").
Acho que neste momento, para conseguir concretizar os meus sonhos, falta apenas um pormaior... não é fácil, mas vou conseguir. As dificuldades nunca me meteram medo e eu sei que se vai concretizar um destes dias... talvez num momento mais certo...

Sem comentários: