17 setembro 2010

... sem luz e sem tinta o meu sonho resigna...



Solidão




Aproximo-me da noite


o silêncio abre os seus panos escuros


e as coisas escorrem


por óleo frio e espesso






Esta deveria ser a hora


em que me recolheria


como um poente


no bater do teu peito


mas a solidão


entra pelos meus vidros


e nas suas enlutadas mãos


solto o meu delírio






É então que surges


com teus passos de menina


os teus sonhos arrumados


como duas tranças nas tuas costas


guiando-me por corredores infinitos


e regressando aos espelhos


onde a vida te encarou






Mas os ruídos da noite


trazem a sua esponja silenciosa


e sem luz e sem tinta


o meu sonho resigna






Longe


os homens afundam-se


com o caju que fermenta


e a onda da madrugada


demora-se de encontro


às rochas do tempo






Mia Couto
in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

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