12 março 2011

...status quo nacional...

...há uns anos foi a chamada "geração rasca"; hoje, há várias gerações de portugueses "à rasca". Várias gerações pós-25 de Abril participaram hoje em manifestações por vários pontos do país. Fico contente. Parece que, finalmente, estamos a acordar da letargia em que vivemos durante 30 anos.

O que é que mudou, no pós-25 de Abril? Com a globalização, tem sido muito mais fácil ter acesso a produtos que há 35 anos atrás faziam parte do nosso imaginário porque as viamos em filmes, nos canais da televisão espanhola ou em revistas estrangeiras. E a nossa vida tem sido mais fácil. Mas, o facilitismo tem um preço: o estarmos empenhados durante anos para adquirirmos um bem: o carro, o electrodoméstico, a mobília da casa, o computador, as férias, roupa... tudo isto a juntar à prestação da casa. Tudo tem que ser adquirido quase ao mesmo tempo, para não nos faltar o tão ansiado conforto. Vivemos como milionários, tendo salários miseráveis, relativamente aos outros países europeus do topo da tabela. E sempre achámos tudo muito normal. Por isso, nunca nos insurgimos contra os maus políticos, que têm enterrado os sonhos e os projectos de milhões de portugueses. Que contribuiram para que os valores deste povo tenham desaparecido. Que nunca apostaram na valorização das imensas riquezas que este cantinho do mundo possui. Políticos, que nunca serviram o povo; ao invés, serviram-se do povo e dos seus cargos para encherem os seus bolsos, dos familiares e amigos. 

Portugal continua a ser o país "C". "C" de cunha. Era assim há 40 anos - quando, para arranjar um emprego numa fábrica ou na função pública, tinham que se ter os conhecimentos certos. E, hoje, nada se alterou. Basta ver uma boa parte das contratações do Diário da República. Basta olhar para a listagem de pessoal de algumas instituições públicas. E basta saber de umas quantas pessoas que concorreram ao lugar, com mais habilitações mas que, ficaram de fora, por não ter o "C" requerido.

Estupidamente, sempre acreditei que podia vencer com base nas minhas qualidades, nos meus conhecimentos e habilitações e, acima de tudo, no meu empenho e no meu trabalho. Logo de início, vi que estava errada. Aconteceram demasiadas situações a demonstrar-me o contrário.

Lembro-me de um concurso, há uns bons anos atrás, em que estavam em causa dois lugares de técnico superior. Concorri a um deles, na área da Toxicologia Forense. O concurso tinha uma prova escrita, uma entrevista e a avaliação curricular. Pedi alguns apontamentos a colegas de Ciências Farmacêuticas e estudei durante mais de uma semana para o teste. O teste não era difícil, mas durante uns bons 20 minutos estive a olhar para a folha sem conseguir escrever palavra. Deu-me "uma branca", como se costuma dizer na gíria estudantil. Enchi-me de coragem e aproveitei os restantes 40 minutos para responder às questões, de forma clara e objectiva, até porque não teria tempo para floreados. Obtive a melhor classificação no teste: 19,8 valores. Curiosamente, na entrevista obtive classificação negativa, sem motivos aparentes. Não era a primeira entrevista de emprego. Mas foi diferente. Quiseram saber quem era a minha família. Provenho de uma família modesta, que conseguiu singrar a pulso e às custas de muito, muito trabalho e da qual tenho um grande orgulho. Mas creio que não foi suficiente para o lugar em causa. Às restantes questões, respondi de forma objectiva sobre o meu currículo e sobre a minha capacidade de trabalho. Quanto à avaliação curricular, pasme-se que um curso de informática ou inglês de 30 horas tinha um peso maior que um mestrado e igual peso que uma licenciatura. Os artigos publicados em revistas intervancionais com peer-reviewing tinham igual peso que os artigos "em preparação". Parece anedota, mas eu e outros candidatos pedimos os critérios de avaliação e ficámos estupefactos ao analisar os critérios. Por esse motivo, não nos estranhou que a candidata escolhida tivesse licenciatura apenas e menor média que todos os restantes candidatos. Com menor classificação no teste que eu, mas com a melhor classificação na entrevista. De facto, não há coincidências. E eu não tinha o perfil Certo.

Em Setembro de 2001 (11 de Setembro, por sinal), tive uma entrevista numa instituição de Ensino Superior para leccionar a disciplina de Biologia Celular. Tinha o grau de Mestre e era aluna de doutoramento na área e já tinha leccionado no Ensino Superior e no Ensino Secundário. Mas, o que contribuiu para a minha escolha, foi o facto de necessitarem de um docente para daí a uma semana. Durante 4 anos leccionei no 1º Semestre nessa instituição. Em 2005, no final do 1º Semestre, comentei com o Vice-Presidente da Instituição que ia entregar a tese de doutoramento. Curiosamente, não me renovaram o contrato. Nem me responderam a qualquer tentativa de contacto. Olhando para os "rebides" dessa instituição de Ensino Superior Público, é fácil perceber porquê. Há docentes com Bacharelato; a maioria tem Licenciatura; os que estão a tempo integral, possuem Mestrado. Há dois docentes com Doutoramento nessa instituição: um a tempo parcial, numa área distinta, e uma docente russa a tempo integral. Numa instituição do Ensino Superior Público, que forma Licenciados e Mestres (de Bolonha), não me parece ser "normal". Mas é a realidade. Para suprimir as necessidades de Mestres e Doutores, recorrem a colaborações com outras instituições. E pelo facto de eu ter um grau superior podia talvez colocar em risco alguém do "mapa". De facto, não há coincidências.

Continuamos a viver num país terceiro-mundista. E o pior, é que essa tacanhez está intrincada no nosso espírito de tal forma que vivemos aterrorizados por nos deparamos com alguém que possa ser um pouco melhor que nós. E quando isso acontece, em vez de lhe tentarmos seguir o exemplo e aprendermos a nos valorizar, fazemos o inverso: criticamos destrutivamente, apontando todos os defeitos, inclusivamente os que nem existem realmente, apenas existem na nossa mente pequenina.

Tenho consciência de que não sou uma mente fabulosamente brilhante. Tudo o que consegui até hoje foi à custa de muito esforço e de muito trabalho. E essa capacidade de trabalho e essa obstinação é o que me caracteriza e foi isso que me fez conseguir chegar até aqui. Mas, fico furiosa, quando vejo que sou criticada por quem tem uma ponta de inveja por algumas das coisas que vou conseguindo graças ao meu empenho. Como se tudo me saísse na farinha amparo, sem qualquer esforço. Esquecem-se que há meses em que mal tenho tempo para dormir, ao passo que eles dormem o seu sono de beleza e não dispensam a sua vidinha social.
E toda a minha vida foi na base do "à rasca" e do "desenrascanço". Corri de Norte a Sul do país várias Escolas Básicas e Secundárias e várias Instituições de Ensino Superior, com contratos a termo certo ou a recibo verde, durante mais de 15 anos. Estive várias vezes desempregada e sem direito a subsídio de desemprego, apesar de ter descontado para a Segurança Social e ter pago os meus impostos. Sei o que é enviar centenas de currículos e não obter qualquer resposta. Sei o que é ir a entrevistas de emprego e dizerem-me que tenho habilitações a mais ou que não tenho o perfil indicado. Sei o que é não ter o nome certo ou o "C" adequado.

Por acaso, numa dessas situações de desemprego e desespero profundo, em que aguardava a marcação das provas públicas de doutoramento, uma amiga encontrou-me e disse-me que necessitavam de um docente com urgência na instituição em que leccionava. Enviei o currículo e fui seleccionada. Durante um semestre, estive a recibos verdes, sem contrato de trabalho. Numa Instituição de Ensino Superior Pública. No semestre seguinte, uma colega rescindiu contrato e estive a substitui-la a tempo parcial (60%). Não recebia o ordenado mínimo sequer. No ano seguinte, fui contratada a tempo integral na base da carreira, apesar de ter mais habilitações que muitos colegas. Aguentei 4 anos assim, com contratos a termo certo. Gosto do local de trabalho e os problemas que existem, são comuns a todos os outros locais. Com o novo Estatuto da Carreira do Pessoal Docente do Ensino Superior, consegui subir de escalão, de acordo com as habilitações que possuo. Até Maio de 2015 tenho contrato. Daqui a 4 anos, logo se verá. Ainda assim, nos últimos 5 anos consegui alguma estabilidade. Estabilidade relativa, porque no final do contrato podia não ter a ansiada renovação. Mas, de qualquer forma, estou no mesmo local de trabalho desde Outubro de 2005. Finalmente, não tenho que me deslocar 200, 300, 500 kms para ir trabalhar. Houve alturas que o que ganhava não compensava os gastos que tinha. Mas não parei. Não fiquei em casa à espera que o emprego "9-to-5" me chegasse. E, durante o tempo em que estive desempregada, aceitei ofertas que não estavam de acordo com as habilitações que possuia. Mas as habilitações não me pagavam a comida, a gasolina, nem as contas da farmácia. E, de facto, não tenho um trabalho "9-to-5". Passei muitas noites mal dormidas, quase de directa, ao longo dos últimos 5 anos: aulas para preparar, testes para corrigir, trabalhos para terminar. Muitas vezes tive inveja dos meus colegas de escola primária ou secundária. Acabaram o 9º ano, ou o 12º ano, mas possuem uma vida estável e possuem mais bens do que eu. E, quando chegam a casa, não necessitam de se preocupar com o trabalho. Durante 12 anos, a situação em que vivi foi deprimente. Houve um conjunto de sonhos que gostaria de ter realizado, mas que não me senti capaz, face à instabilidade em que vivia. E, ao olhar para os meus amigos, com as suas famílias, as suas casas, os seus empregos, sentia uma inveja enorme. E um vazio enorme ao ver que tinha investido tanto na minha formação académica para nada.

O 25 de Abril de 1974 foi um marco histórico em Portugal: o final de uma ditadura e o renascer da esperança de um futuro melhor, com liberdade, com sonhos. Mas o sonho de Abril foi toldado por um conjunto de personagens que, embora não se revissem na política do Estado Novo, possuiam uma mentalidade tacanha de déspotas. E, que usaram os cravos de Abril para seu benefício. O que restou ao povo, em geral? Um conjunto de auto-estradas, que serviram para isolar o interior do país. Um conjunto de subsídios que acabaram com as explorações agrícolas neste país e enriqueceram os latifundiários, dado que ao invés de se pagar o subsídio por produto produzido, se paga por sementeira. Um conjunto de subsídios que acabaram com a indústria neste país, aumentando o desemprego e a precaridade. Um conjunto de subsídios fomentando a malandragem. De facto, economicamente, mais vale não trabalhar neste país, neste momento. Mais vale não produzir. O chico-espertismo nacional impera, aliado à corrupção. E quando falo em corrupção, não falo apenas dos políticos ou dos gestores de empresas. Falo também dos que têm subsídio de reinserção social a troco de nada. Da atribuição de subsídios a quem não os necessita. Dos que usam e abusam das baixas fraudulentas. Dos que possuem subsídio de desemprego e trabalham noutro lado. Ou, pior ainda, dos que possuem subsídio de desemprego e trabalham apenas o tempo necessário para o subsídio. Ou dos que recusam ofertas de trabalho, porque têm subsídio e podem estar no café. E vejo imensas pessoas com vontade de trabalhar que, para exercerem a profissão para a qual estudaram, emigram e contribuem para o crescimento de outros países. Afinal, não mudou grande coisa desde há 50 anos. Pelo menos, o essencial não mudou e deveria ter mudado.

Este é o país pós-25 de Abril. Um país sem orgulho. Um país desmotivado. Um país onde vemos singrar quem tem o factor "C" e não quem tem mais experiência ou mais habilitações. Um país onde não vale a pena trabalhar ou ser bom na nossa profissão. Afinal, é demasiado comum encontrarmos escrito que "Quem trabalha muito, erra muito. Quem trabalha pouco, erra pouco. Quem não trabalha não erra. E quem não erra é promovido. " E até quando vamos ser assim? Batemos no fundo do fundo... e continuamos a escavar. E, a menos que nasça um movimento de cidadãos em quem se confie, o desgoverno destes anos entre o PS e o PSD, irá continuar. E continuaremos a saltitar entre o lume e a fogueira. Sairemos ainda mais queimados. Esturricados, diria.



Quanto à manifestação de ontem, fico contente por ver que finalmente começamos a perceber que temos que fazer alguma coisa. Que a culpa não é dos políticos, apenas. A culpa é nossa, que deixamos que nos roubem constantemente. Que nos roubem os euros, mas sobretudo que nos roubem os sonhos e nos hipotequem o presente, deixando-nos sem qualquer esperança de um futuro decente.
Espero que as manifestações populares de hoje, sejam o início da mudança. Porque é imperioso mudar. E fico contente, por ver que essa manifestação foi organizada sem ligações a partidos políticos ou organizações políticas. Mesmo não me revendo plenamente no manifesto, concordo com muitas coisas.

Afinal, "O POVO saiu à rua num dia assim"...


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