26 dezembro 2006

A morte de Rimbaud - parte II

não consigo dormir, nunca mais.
ando de um lado para o outro. canso o corpo, enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora.

lá fora, dentro da noite, os chacais, as hienas cercam a casa, mas o pior é este chacal que me esfarrapa as vísceras, esta hiena que me devora o sonho.
pela janela vejo a linha crepuscular da duna.
um novo corpo liberta-se em direcção aos nevoeiros das cidades.
sei, nesse instante, que nenhum abraço chega a atenuar a dor da separação.
afastados, tudo o que nos resta é começar a imitar a vida um do outro.

o que dissemos perdeu o sabor e o sentido.
harrar, aden, lisboa, este silêncio...capaz de ordenar e desordenar o mundo. o canto sublime das miragens.

mas vai chegar o inverno, e a tristeza dos dias começa a zumbir à roda da cabeça.

abri a janela.
avisto uma nesga de céu limpo.
lembro-me de quando trocava um sorriso por um verso, ou por um insulto.
imitávamos assim a felicidade.

o sol fulmina a memória. limpa-a da crueldade do passado.
a vida, aqui, reduz-se a efémeros passos, surdas gargalhadas, ideias que se evaporam lentamente.
enfim, o mundo não é assim tão grande...

e a vida, afinal é como as orquídeas - reproduz-se com dificuldade.
mas estou cansado.
os olhos fecham-se-me com o peso das paixões desfeitas.
imagens, imagens que se colam ao interior das pálpebras - imagens de neve e de miséria, de cidades obsessivas, de fome e de violência, de sangue, de aquedutos, de esperma, de barcos, de combóios, de gritos...talvez...talvez uma voz.
o desejo de um sol impiedoso, sobretudo enquanto dormia.

e embarquei num cargueiro, desertei em java, pensei mesmo construir uma casa.
mas não foi possível.

ainda vejo aquelas árvores cobertas de ossos luminosos, e a duna incendiada, o deserto onde posso continuar a recontruir o universo.

escavo no coração um poço de sal, para dar de beber ao viajante que fui.
deixo o vento arrastar consigo a infindável caravana de ilusões.

e digo: que tudo se afogue na gordura das manhãs, que tudo silencie...e uma língua de fogo atinja os livros que não escreverei.

-Al Berto-

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