27 dezembro 2006

A morte de Rimbaud - parte III


os dias estão cheios de cartas e de recomendações, de amigos que partem para sempre, ou adoecem, de recados e de intrigas, de contas intermináveis, de ouro, de corpos, de fortuna e de infortúnios.
de morte, e de cães feridos a uivar à porta da desolação.

uma espécie de miséria e de orgulho, escorrem no fundo de mim. e talvez seja a mistura venenosa da miséria com o orgulho que me há-de perder...

não tenho mais nada a dizer. os poetas morreram.
fugir tornou-se uma obsessão, ou então é a melhor maneira de encenar o desespero.
bebi águas inquinadas.
vi o corpo suspenso no rebordo dos poços, o coração batendo descontrolado.

mas a morte, quando se aproxima, é uma coisa simples... vem comer à mão a cinza melodiosa dos dias.
por isso sei que, ao amanhecer, posso perguntar:
quantas áfricas murcharam na boca do amor
quantas feras despedaçadas foram comidas ao entardecer?
quantos homens conseguiram apaziguar o relâmpago da paixão?
quantos desejos ficaram abandonados na escuridão intacta dos quartos?

a qual dos demónios me vender?
que besta suja será preciso adorar?
em que sangue contamindao mergulharei a língua?
que fogo estranho é este? que devota a beleza interior das coisas...
que mentira me poderá salvar?

uma golada de veneno e eis que se acende o talento.
o rumor precioso das sílabas. o choro e o riso.
o brilho gelado das imagens.
então, ergo o cachimbo e fumo um tempo futuro, ajeito o cinturão onde guardo o ouro - e vou pelo engano das palavras.

descubro a febre, a ânsia do eterno viajante.
abro as mãos, solto as borboletas e os pássaros - que dizem ser a alma dos mortos.
um espelho onde não me reconheço, mas o pior é que nunca acreditei no que me disseram, e parti o espelho.

o azar nunca mais me largou, e também não posso dizer que os negócios me tenham corrido bem.
foi maldição, dizem.
paciência. mas não há maldição sem desejo - e eu não páro de desejar, sôfrego... capaz de arriscar a vida e a razão.

ou de matar.


Al Berto

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