28 dezembro 2006

A morte de Rimbaud - parte IV

um rasgão de luz sobre a pele, dormes na seiva doce das manhãs.
mas sabes que só há repouso para o sofrimento quando se entra no primeiro dia dos dias sem ninguém.
a dor, a perna amputada, a chaga viva, o sangue a latejar - o mapa da abissínia.

o sol enterra-se nas areias.
viajo, sem me mexer desta enxerga branca.
tento encontrar espaço para a lucidez do meu silêncio.
no lugar do poema coalha o ouro das geadas, e os animais são formas etéreas que se me colam ao rosto.
o que morre, quase não faz falta...

dantes ouvia o mar...bastava encostar a cabeça ao peito um do outro.
mas um homem em cujo coração se tenha concentrado toda a fúria de viver, será um homem feliz?
não sei se posso querer alguma eternidade...não sei...

o que vejo já não se pode cantar.

que horas serão dentro do meu corpo?
que mineral vermelho jorraria se golpeasse uma veia...não sei...não sei...

o que vejo já não se pode cantar.
lembro-me duma cabeça rebelde flutuando junto à janela.
mas a casa está repleta de gemidos, vai amanhecer, não me lembro de mais nada.

o que vejo já não se pode cantar.

recomeço a fuga, a última, e nela hei-de morrer de olhos abertos, atento ao mínimo rumor, ao mais pequeno gesto - atento à metamorfose do corpo que sempre recusou o aborrecimento.
o que vejo já não se pode cantar.

caminho com os braços levantados, e com a ponta dos dedos acendo o firmamento da alma.
espero que o vento passe...escuro, lento. então, entrarei nele, cintilante, leve...e desapareço.

Al Berto

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