22 abril 2007

Morte de Rimbaud



I

Todos os pássaros sossegaram.
As crianças desceram das árvores, guardaram os jogos, recolheram a casa.
Levanto a cabeça e deixo a voz deambular por dentro deste silêncio de
água e de estrelas.
A noite está próxima.
Deixo o corpo escorregar na poeira luminosa.
Acendo um cigarro, ponho-me a falar com o meu fantasma.
Longe daqui, a cidade enfeitou-se com os seus crimes de néon, com suas
traições... ouço hélices de barcos,
motores... quando um rosto esvoaça ao alcance da mão.


A verdade é que passei a vida a fugir, de cidade em cidade, com um
sussurro cortante nos lábios.
E atravessei cidades e ruas sem nome, estradas, pontes que ligam uma
treva a outra treva.
Caminho como sempre caminhei, dentro de mim - rasgando paisagens,
sulcando mares, devorando imagens.


O absinto... esse álcool que me permitiu medir o tempo no movimento dos
astros.
E vi a vida como um barco à deriva. Vi esse barco tentar regressar ao
porto - mas os portos são olhos enormes
que vigiam os oceanos, servem para levarmos o corpo até um deles e
morrer.


A noite está próxima.
Vejo acenderem-se mãos voláteis, e uma sede de poços e de nomadismo.
Sulco a areia que sitia as cidades para trás abandonadas. Abro fendas na
memória, e a noite surge com suas
cidades queimadas, desertas... e o vento... o vento cintila onde cresce
o lobo que me ronda o sono.
Estendo a mão, pego no revólver, mas nada acontece.


De nada me serviria inventar outra vez o rio das palavras, de nada me
serviria saber a geometria exacta dos cristais, ou redesenhar o corpo e
aperfeiçoá-lo.
Fico assim, inerte, à beira da noite... olhando o brilho da lua jorrando
águas.


O regresso nunca foi possível. - O verdadeiro fugitivo não regressa, não
sabe regressar, reduz os continentes a distâncias mentais.
Aprende a fala dos outros - e, por cima dele, as constelações vão
esboçando o tormentoso destino dos homens.


Pressinto uma sombra, a envolver-me. Ouço músicas... espirais de som
subindo aos subúrbios da alma.
E acendo o lume das pirâmides, onde o tempo não foi inventado, e renego
a alegria.
Não semearei o meu desgosto, por onde passar. Nem as minhas traições.


II


Não consigo dormir, nunca mais. Ando de um lado para o outro. Canso o
corpo, enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora.


Lá fora, dentro da noite, os chacais... as hienas cercam a casa.
Mas o pior é este chacal que me esfarrapa as vísceras, esta hiena que me
devora o sonho.


Pela janela vejo a linha crepuscular da duna. Um novo corpo liberta-se
do meu e caminha fora de mim - vejo-o afastar-se em direcção aos
nevoeiros das cidades.


Sei, neste instante, que nenhum abraço chega para atenuar a dor da
separação.
Afastados - tudo o que nos resta é começar a imitar a vida um do outro.


O que dissemos perdeu o sabor e o sentido.


Harrar, Aden, Lisboa, este silêncio... capaz de ordenar e desordenar o
mundo... o canto sublime das miragens.


Mas vai chegar o inverno, e a tristeza dos dias começa a zumbir à roda
da cabeça.


Abri a janela. Avisto uma nesga de céu limpo.
Lembro-me de quando trocava um sorriso por um verso, ou por um insulto.
Imitávamos assim a felicidade...


(Mas) O sol fulmina a memória. Limpa-a da crueldade do passado.
(E) A vida, aqui, reduz-se a efémeros passos, surdas gargalhadas, ideias
que se evaporam lentamente.


Enfim, o mundo não é assim tão grande...


E a vida, afinal, é como as orquídeas - reproduz-se com dificuldade.


Mas estou cansado. Os olhos fecham-se-me com o peso das paixões
desfeitas.
Imagens, imagens que se colam ao interior das pálpebras - imagens de
neve e de miséria, de cidades, de fome e de violência, de sangue, de
aquedutos, de esperma, de barcos, de comboios, de gritos...
talvez uma voz... o desejo de um sol impiedoso, sobretudo enquanto
dormia.


E embarquei num cargueiro, desertei em Java, pensei mesmo construir uma
casa.
Mas não foi possível.


Ainda vejo aquelas árvores cobertas de ossos luminosos, e a duna
incendiada, o deserto onde posso continuar a reconstruir o universo.


Escavo no coração um poço de sal, para dar de beber ao viajante que fui.
Deixo o vento arrastar consigo a infindável caravana de ilusões.


E digo: que tudo se afogue na gordura das manhãs, que tudo silencie... e
uma língua de fogo atinja os livros que não escreverei.


III


Os dias estão cheios de cartas e recomendações, de amigos que partem
para sempre, ou adoecem, de recados e de intrigas, de contas
intermináveis, de ouro, de corpos, de fortuna e de infortúnios.


De morte, e de cães feridos a uivar à porta da desolação.


Uma espécie de miséria e de orgulho, escorrem no fundo de mim. E talvez
seja a mistura venenosa da miséria com o orgulho que me há-de perder...
Não tenho mais nada a dizer. Os poemas morreram.
Fugir tornou-se uma obsessão, ou então é a melhor maneira de encarar o
desespero.
Bebi águas inquinadas. Vi o corpo suspenso no rebordo dos poços, o
coração batendo descontrolado.


Mas a morte, quando se aproxima, é uma coisa simples...


...vem comer à mão a cinza melodiosa dos dias.


Por isso sei que, ao amanhecer, posso perguntar:
Quantos africanos murcharam na boca do amor?
Quantas feras despedaçadas foram comidas ao entardecer?
Quantos homens conseguiram apaziguar o relâmpago da paixão?
Quantos desejos ficaram abandonados na escuridão intacta dos quartos?


A qual dos demónios me vender?
Que besta suja será preciso adorar?
Em que sangue contaminado mergulharei a língua?
Que fogo estranho é este? - que devora a beleza interior das coisas...
Que mentira me poderá salvar?


Uma golada de veneno e eis que se acende o talento. O rumor precioso das
sílabas. O choro e o riso.
O brilho gelado das imagens.
(Então), Ergo o cachimbo e fumo um tempo futuro, ajeito o cinturão onde
guardo o ouro - e vou pelo engano das palavras...


Descubro a febre, a ânsia do eterno viajante.
Abro as mãos, solto as borboletas e os pássaros, que dizem ser a alma
dos mortos... um espelho onde não me reconheço... mas o pior é que nunca
acreditei no que me disseram, e parti o espelho.


O azar nunca mais me largou, e também não posso dizer que os negócios me
tenham corrido bem...
Foi maldição, dizem.
Paciência. Mas não há maldição sem desejo - e eu não paro de desejar,
sôfrego... capaz de arriscar a vida e a razão. Ou de matar.


IV


Um rasgão de luz sobre a pele, dormes na seiva doce das manhãs.


Mas sabes que só há repouso para o sofrimento quando se entra no
primeiro dia dos dias sem ninguém.


A dor, a perna amputada - a mapa da abissínia.
O sol enterra-se nas areias.
Viajo, sem me mexer desta enxerga branca. Tento encontrar espaço para a
lucidez do meu silêncio.
No lugar do poema coalha o ouro das geadas, e os animais são formas
etéreas que se me colam ao rosto.
O que morrer, quase não faz falta...


Dantes ouvia o mar... bastava encostar a cabeça ao peito um do outro.


Mas um homem em cujo coração esteja concentrada toda a fúria de viver,
será um homem feliz?
Não sei se posso querer alguma eternidade... não sei...


... o que vejo já não se pode cantar.


Que horas serão dentro do meu corpo?
Que mineral vermelho jorraria se golpeasse uma veia... não sei...


... o que vejo já não se pode cantar.


Lembro-me duma cabeça rebelde flutuando junto à janela. Mas a casa está
repleta de gemidos, vai amanhecer, não me lembro de mais nada.


Recomeço a fuga, a última, e nela hei-de morrer de olhos abertos, atento
ao mínimo rumor, ao mais pequeno gesto - atento à metamorfose do corpo
que sempre recusou o aborrecimento.


O que vejo já não se pode cantar.


Caminho com os braços levantados, e com a ponta dos dedos acendo o
firmamento da alma.


Espero que o vento passe... escuro, lento - então, entrarei nele,
cintilante, leve... e desapareço.


Al Berto


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