22 abril 2008

...O bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma bênção estranha como a de ter loucura sem ser doida...





De Ulisses ela aprendera a ter coragem de ter fé — muita coragem, fé em quê? Na própria fé, que a fé pode ser um grande susto, pode significar cair no abismo, Lóri tinha medo de cair no abismo e segurava-se numa das mãos de Ulisses enquanto a outra mão de Ulisses empurrava-a para o abismo — em breve ela teria que soltar a mão menos forte do que a que a empurrava, e cair, a vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre.
A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser humano.
E houve a noite de terror. Ela ouvia passos indo e vindo. Olhou pela fresta da janela e viu que era o mesmo homem meio doido, com braços compridos de macaco, que durante o dia a seguira. Os passos vagarosos que vinham e iam e voltavam. Lóri sabia que ele esperava por ela. Pela fresta viu que ele fumava e pacientemente andava para cá e para Iá.
Ela não suportou mais e telefonou para Ulisses. Ele disse que em minutos estaria Iá. Minutos ou horas intermináveis? Ter-se-ia quebrado o freio de seu carro ou coisa semelhante?
Finalmente ouviu o carro parar. Viu pela janela os dois homens falando, e um sussurro calmo que se prolongava demais.
Afinal viu o homem se afastar, ao mesmo tempo que Ulisses dizia-lhe baixo:
— Lóri, está tudo bem. Foi um homem que você hoje ficou olhando muito, possivelmente distraída, e ele com esperança acompanhou você esperando que você abrisse a porta.
— Venha até a porta. Ele foi:
— Quer tomar um café? perguntou ela como pretexto para fazê-lo entrar.
Ele ficou no limiar. Ela estava de pé, em camisola curta e transparente. Ele ia dizer: "pode dormir descansada, eu dissuadi o homem a meu modo". Mas antes de dizer isso ele parou inteiramente, com os lábios apertados, e olhou-a de alto a baixo. Afinal disse:
— De dia telefono para você.
Com o desespero de fêmea desprezada, ouviu o carro dele se afastar.
A visão de Ulisses tirara-lhe o sono. Olhou-se de corpo inteiro ao espelho para calcular o que Ulisses vira. E achou-se atraente. No entanto ele não quisera entrar.
Esperou sem pressa pela madrugada. A melhor luz de se viver era na madrugada, leve tão leve promessa de manhãzinha. Ela sabia disso, já passara inúmeras vezes por isso. Como para um pintor que escolhe a luz que lhe convém, Lóri preferia para a descoberta do que se chama viver essas horas tímidas do vago começo do dia. De madrugada ia ao pequeno terraço e quando tinha sorte era madrugada com lua-cheia. Tudo isso ela já aprendera através de Ulisses. Antes ela evitara sentir. Agora ainda tinha porém já com leves incursões pela vida.
Mas da lua ela não tinha receio porque era mais lunar que solar e via de olhos bem abertos nas madrugadas tão escuras a lua sinistra no céu. Então ela se banhava toda nos raios lunares, assim como havia os que tomavam banhos de sol. E ficava profundamente límpida.
Nesta madrugada fresca foi ao terraço e refletindo um pouco chegou à assustadora certeza de que seus pensamentos eram tão sobrenaturais como uma história passada depois da morte. Ela simplesmente sentira, de súbito, que pensar não lhe era natural. Depois chegara à conclusão de que ela não tinha um dia-a-dia mas sim uma vida-a-vida. E aquela vida que era sua nas madrugadas era sobrenatural com suas inúmeras luas banhando-a de um prateado líquido tão terrível.
Sobretudo aprendera agora a se aproximar das coisas sem ligá-las à sua função. Parecia agora poder ver como seriam as coisas e as pessoas antes que lhes tivéssemos dado o sentido de nossa esperança humana ou de nossa dor. Se não houvesse humanos na terra, seria assim: chovia, as coisas se ensopavam sozinhas e secavam e depois ardiam secas ao sol e se crestavam em poeira. Sem dar ao mundo o nosso sentido, como Lóri se assustava! Tinha medo da chuva quando a separava da cidade e dos guarda-chuvas abertos e dos campos se embebendo de água. Então o que chamava de morte a atraía tanto que só poderia chamar de valoroso o modo como, por solidariedade e pena dos outros, ainda estava presa ao que chamava de vida. Seria profundamente amoral não esperar pela morte como os outros todos esperam por esta hora final. Teria sido esperteza dela avançar no tempo, e imperdoável ser mais sabida que os outros. Por isso, apesar da curiosidade intensa que tinha pela morte, Lóri esperava.
Amanheceu.
O que se passara no pensamento de Lóri naquela madrugada era tão indizível e intransmissível como a voz de um ser humano calado. Só o silêncio da montanha lhe era equivalente. O silêncio da Suíça, por exemplo. Lembrou-se com saudade do tempo em que o pai era rico e viajavam vários meses por ano.
Por mais intransmissível que fossem os humanos, eles sempre tentavam se comunicar através de gestos, de gaguejos, de palavras mal ditas e malditas. Já era de manhã mais alta quando ela preparou café forte, tomou-o e dispôs-se a se comunicar com Ulisses, já que Ulisses era o seu homem. Escreveu:
"E tão vasta a noite na montanha. Tão despovoada. A noite espanhola tem o perfume e o eco duro do sapateado da dança, a italiana tem o mar cálido mesmo se ausente. Mas a noite de Berna tem o silêncio.
Tenta-se em vão ler para não ouvi-lo, pensar depressa para disfarçá-lo, inventar um programa, frágil ponte que mal nos liga ao subitamente improvável dia de amanhã. Como ultrapassar essa paz que nos espreita. Montanhas tão altas que o desespero tem pudor. Os ouvidos se afiam, a cabeça se inclina, o corpo todo escuta: nenhum rumor. Nenhum galo possível. Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio? Desse silêncio sem lembrança de palavras. Se és morte, como te abençoar?
É um silêncio, Ulisses, que não dorme: é insone: imóvel mas insone e sem fantasmas. E terrível — sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e "diga" alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Como eu, Ulisses? Se ao menos houvesse o vento. Vento é ira, ira é a vida. Mas nas noites que passei em Berna não havia vento e cada folha estava incrustada no galho das árvores imóveis. Ou se fosse época de cair neve. Que é muda mas deixa rastro — tudo embranquece, as crianças riem brincando com os flocos, os passos rangem e marcam. Isso durante o dia é tão intenso que a noite ainda é povoada. Há uma continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode falar do silêncio como se fala da neve. O silêncio é a profunda noite secreta do mundo. E não se pode falar do silêncio como se fala da neve: sentiu o silêncio dessas noites? Quem ouviu não diz. Há uma maçonaria do silêncio que consiste em não falar dele e de adorá-lo sem palavras.
A noite, Ulisses, desce com suas pequenas alegrias de quem acende lâmpadas, com o cansaço que tanto justifica o dia. As crianças de Berna adormecem, fecham-se as últimas portas. As ruas brilham nas lajes e brilham já vazias. E afinal apagam-se as luzes das casas. Só um ou outro poste iluminado para iluminar o silêncio.
Mas este primeiro silêncio, Ulisses, ainda não é o silêncio. Que se espere, pois as folhas das árvores ainda se ajeitarão melhor, algum passo tardio talvez se ouça com esperança pelas escadas.
Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito atento, e da Terra e da Lua. Então ele, o silêncio, aparece. E o coração bate ao reconhecê-lo: pois ele é o de dentro da gente.
Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que passaram e para sempre se perderam. Mas é inútil esquivar-se: há o silêncio. Mesmo o sofrimento pior, o da amizade perdida, é apenas fuga. Pois se no começo o silêncio parece aguardar uma resposta — como arde, Ulisses, por ser chamada e responder; — cedo se descobre que de ti ele nada exige, talvez apenas o teu silêncio. Mas isto os da maçonaria sabem. Quantas horas perdi na escuridão supondo que o silêncio te julga — como esperei em vão ser julgada pelo Deus. Surgem as justificações, trágicas justificações forjadas, humildes desculpas até à indignidade. Tão suave é para o ser humano enfim mostrar sua indignidade e ser perdoado com a justificativa de que se é um ser humano humilhado de nascença.
Até que se descobre, Ulisses — nem a tua indignidade ele quer. Ele é o Silêncio. Ele é o Deus?
Pode-se tentar enganá-lo também. Deixa-se como p< acaso o livro da cabeceira cair no chão. Mas — horror — o livro cai dentro do silêncio e se perde na muda e parada voragem deste. E se um pássaro enlouquecido cantasse? Esperança inútil. O canto apenas atravessaria como uma leve flauta o silêncio. O que mais se parecia, no domínio do som, com o silêncio, era uma flauta.
Então, se há coragem, não se luta mais. Entra-se nele, vai-se nele para o Inferno? Vai-se com ele, nós os únicos fantasmas de uma noite em Berna. Que se entre. Que não se espere o resto da escuridão diante dele, só ele próprio. Será como se estivéssemos num navio tão descomunalmente enorme que ignorássemos estar num navio. E este singrasse tão largamente que ignorássemos estar indo. Mais do que isso um homem não pode. Viver na orla da morte e das estrelas é vibração mais tensa do que as veias podem suportar. Não há sequer um filho de astro e de mulher como intermediário piedoso. O coração tem que se apresentar diante do Nada sozinho e sozinho bater em silêncio de uma taquicardia nas trevas. Só se sente nos ouvidos o próprio coração. Quando este se apresenta todo nu, nem é comunicação, é submissão. Pois nós não fomos feitos senão para o pequeno silêncio, não para o silêncio astral.
Se não há coragem, que não se entre. Que se espere o resto da escuridão diante do silêncio, só os pés molhados pela espuma de algo que se espraia de dentro de nós. Que se espere. Um insolúvel pelo outro. Um ao lado do outro, duas coisas que não vêem na escuridão. Que se espere. Não o fim do silêncio mas o auxílio bendito de um terceiro elemento: a luz da aurora.
Depois nunca mais se esquece, Ulisses. Inútil até fugir para outra cidade. Pois quando menos se espera pode-se reconhecê-lo — de repente. Ao atravessar a rua no meio das buzinas dos carros. Entre uma gargalhada fantasmagórica e outra. Depois de uma palavra dita. Às vezes no próprio coração da palavra se reconhece o Silêncio. Os ouvidos se assombram, o olhar se esgazeia — ei-lo. E dessa vez ele é fantasma."
Escrever aliviou-a. Estava de olheiras pela noite não dormida, cansada, mas por um instante — ah como Ulisses gostaria de saber — feliz. Porque, se não expressara o inexpressível silêncio, falara como um macaco que grunhe e faz gestos incongruentes, transmitindo não se sabe o quê. Lóri era. O quê? Mas ela era.
O que acontecia na verdade com Lóri é que, por alguma decisão tão profunda que os motivos lhe escapavam — ela havia por medo cortado a dor. Só com Ulisses viera aprender que não se podia cortar a dor — senão se sofreria o tempo todo. E ela havia cortado sem sequer ter outra coisa que em si substituísse a visão das coisas através da dor de existir, como antes. Sem a dor, ficara sem nada, perdida no seu próprio mundo e no alheio sem forma de contato.
Fora então que Ulisses aparecera casualmente na sua vida. Ele, que se interessara por Lóri apenas pelo desejo, parecia agora ver como ela era inalcançável. E mais: não só inalcançável por ele mas por ela própria e pelo mundo. Ela vivia de um estreitamento no peito: a vida.
Então é que haviam começado os encontros: ela só parecia querer dele aprender alguma coisa e enganara-se pensando que queria aprender pelo fato de Ulisses ser professor de Filosofia, usando-o nessa esperança. Quando esta morreu, ao ver que ele não tinha a menor intenção de ensinar-lhe um modo de viver "filosófico" ou "literário", já era tarde: estava presa a ele porque queria ser desejada, sobretudo gostava de ser desejada meio selvagemente quando ele bebia demais. Já tinha sido desejada por outros homens mas era novo Ulisses querendo-a e esperando com paciência — mesmo quando estava embriagado, o que não lhe tirava o controle — e esperando com paciência que ela estivesse pronta, enquanto ele próprio dizia de si mesmo que estava em plena aprendizagem, mas tão além dela que ela se transformava em ínfimo corpo vazio e doloroso, apenas isso. E ela ansiava por ele porque exatamente ele lhe parecia ser o limite entre o passado e o que viesse — o que viria? Nada, pensava em desespero. Esperava, já que não tinha a fazer senão dar aulas de manha no curso primário ou então estar de férias como agora, ler um pouco, comer e dormir, e encontrar-se com Ulisses que pouco a transformava, ou se a transformava era pouco demais. E esperar.
No entanto era o seu pavor de uma possível intimidade de alma com Ulisses o que a deixava irritada com ele. Estaria na verdade lutando contra a sua própria vontade intensa de aproximar-se do impossível de um outro ser humano? Ah, que não fosse mais a dor, e ajudava Ulisses aplicando-se depressa em aprender — o quê? — por medo de que ao final ele achasse que já era tarde demais para ela e recuasse gentilmente. Parecia-lhe no entanto que ela própria dificultava a missão de ambos. Porque embora sem saber o que queria, além de um dia vir a dormir com ele, adivinhava que seria algo tão difícil de dar e receber que ele talvez se recusasse.
A própria Lóri tinha uma espécie de receio de ir, como se pudesse ir longe demais — em que direção? O que dificultava a ida. Sempre se retinha um pouco como se reti-vesse as rédeas de um cavalo que poderia galopar e levá-la Deus sabe onde. Ela se guardava. Por que e para quê? Para o que estava ela se poupando? Era um certo medo da própria capacidade, pequena ou grande, talvez por não conhecer os próprios limites. Os limites de um humano eram divinos? Eram. Mas parecia-lhe que, assim como uma mulher às vezes se guardava intocada para dar-se um dia ao amor, que ela queria morrer talvez ainda toda inteira para a eternidade tê-la toda.
Queria ela a salvação? A dor fora anquilosada e paralisada dentro de seu peito, como se ela não quisesse mais usá-la como forma de viver. Mas essa precaução — vinda depois de Ulisses — não era ainda a que a salvaria: pois em lugar da dor, nada viera senão a parada da vida dos sentimentos. Se era a salvação que ela esperava de Ulisses, isso seria pedir tanto e tão grande que ele negaria? Ela nunca vira ninguém salvar o outro, então temia uma aproximação que só faria desiludi-la na confirmação de que um ser não transpassa o outro como sombras que se trespassam.
Às vezes regredia e sucumbia a uma completa irresponsabilidade: o desejo de ser possuída por Ulisses sem ligar-se a ele, como fizera com os outros. Mas também nisso poderia falhar: era agora uma mulher de grande cidade mas o perigo é que também havia uma forte herança agrária vinda de longe no seu sangue. E sabia que essa herança poderia fazer com que de repente ela quisesse mais, dizendo-se: não, eu não quero ser eu somente, por ter um eu próprio, quero é a ligação extrema entre mim e a terra friável e perfumada. O que chamava de terra já se tornara o sinônimo de Ulisses, tanto ela queria a terra de seus antepassados. Com as crianças que ela ensinava de manhã, não conseguia unir-se à terra, como se não estivesse pronta para ter a ligação de mulher com o que representava filhos. E restava, ainda como sombra da dor sombria de que fora feita antes de Ulisses, o pensamento desalentado: o que ela era, era apenas uma pequena parte de si mesma.
Sua alma incomensurável. Pois ela era o Mundo. E no entanto vivia o pouco. Isso constituía uma de suas fontes de humildade e forçada aceitação, e também a enfraquecia diante de qualquer possibilidade de agir.
Aliás sentir-se humilde demais era de onde paradoxalmente vinha a sua altivez de pessoa. E que sua altivez — que se refletia no modo flexível e tranqüilo de andar — sua altivez vinha da certeza obscura de que suas raízes eram fortes, e que sua humildade não era apenas humildade humana: é que qualquer raiz era forte, e sua humildade vinha da certeza obscura de que todas as raízes eram humildes, terrosas e cheias de úmido vigor na sua modéstia nodosa de raiz.
É claro que tudo isso não era pensado: era vivido, com uma ou outra rápida passagem de luz de holofote na noite iluminando o céu por um átimo de segundo de pensamento a escuridão.
O que também salvara Lóri é que sentia que se o seu mundo particular não fosse humano, também haveria lugar para ela, e com grande beleza: ela seria uma mancha difusa de instintos, doçuras e ferocidades, uma trêmula irradiação de paz e luta, como era humanamente, mas seria de forma permanente: porque se o seu mundo não fosse humano ela seria um bicho. Por um instante então desprezava o próprio humano e experimentava a silenciosa alma da vida animal.
E era bom. "Não entender" era tão vasto que ultrapassava qualquer entender — entender era sempre limitado. Mas não-entender não tinha fronteiras e levava ao infinito, ao Deus. Não era um não-entender como um simpies de espírito. O bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma bênção estranha como a de ter loucura sem ser doida. Era um desinteresse manso em relação às coisas ditas do intelecto, uma doçura de estupidez.
Mas de vez em quando vinha a inquietação insuportável: queria entender o bastante para pelo menos ter mais consciência daquilo que ela não entendia. Embora no fundo não quisesse compreender. Sabia que aquilo era impossível e todas as vezes que pensara que se compreendera era por ter compreendido errado. Compreender era sempre um erro — preferia a largueza tão ampla e livre e sem erros que era não-entender. Era ruim, mas pelo menos se sabia que se estava em plena condição humana.
No entanto às vezes adivinhava. Eram manchas cósmicas que substituíam entender.

Clarice Lispector
in "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres"

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