25 abril 2008

...parecia estar lutando corpo a corpo com aquele homem, assim como lutava consigo mesma...







Ela abaixou a cabeça, não em culpa, mas numa infantilidade de criança que esconde o rosto. Foi o que Ulisses pensou e seu coração bateu de alegria. Porque ele estava infinitamente mais adiantado na aprendizagem: ele reconhecia em si a alegria e a vitória.

De novo ficaram em silêncio. Como se sentisse que haviam falado mais do que ela no presente, poderia suportar, Ulisses tomou dessa vez um tom mais leve e casual:

— Há quanto tempo você se formou, quero dizer, para ser professora?

— Cinco anos.

— Tudo com você é cinco? perguntou sorrindo. Aposto que você era a primeira da turma.

Ela se surpreendeu:

— Como é que você sabe?

— É que suas colegas também estavam ocupadas em viver, e você, para não sofrer, deve ter se dedicado encarniçadamente ao estudo. Aposto também como você é das melhores professoras da escola.

— Pelo mesmo motivo? perguntou sombria.

— É. Não quero dizer que os motivos de se ser dos melhores sejam sempre os mesmos. Eu, por exemplo, suponho ser dos melhores professores da faculdade. Primeiro porque a matéria sempre me apaixonou e eu esperava dela que me respondesse a perguntas, que me fizesse pensar. Tenho um prazer enorme de pensar, Lóri. Depois, por sorte, tive ótimos professores, além de simultaneamente ser um autodidata: quase todo o meu dinheiro então era aplicado na compra de livros caríssimos. Outra sorte que tenho como professor: ser amado pelos alunos. Mas eu também vivia, e continuo vivendo agora. Enquanto você é boa professora mas nem se permite talvez rir com os alunos. Depois você aprenderá, Lóri, e então experimentará em cheio a grande alegria que é de se comunicar, de transmitir. Lóri mantinha-se calada e séria.

— Lóri, leia este poema e entenda — tirou do bolso um papel amarrotado — faço poesia não porque seja poeta mas para exercitar minha alma, é o exercício mais profundo do homem. Em geral sai incongruente, e é raro que tenha um tema: é mais uma pesquisa de modo de pensar. Este talvez tenha saído com um sentido mais fácil de aprender.

Ela leu o poema, não entendeu nada e entregou-lhe a folha de papel de volta, em silêncio.

— Se um dia eu voltar a escrever ensaios, vou querer o que é o máximo. E o máximo deverá ser dito com a matemática perfeição da música, transposta para o profundo arrebatamento de um pensamento-sentimento. Não exatamente transposta, pois o processo é o mesmo, só que em música e nas palavras são usados instrumentos diferentes. Deve, tem que haver, um modo de se chegar a isso. Meus poemas são não-poéticos mas meus ensaios são longos poemas em prosa, onde exercito ao máximo a minha capacidade de pensar e intuir. Nós, os que escrevemos, temos na palavra humana, escrita ou falada, grande mistério que não quero desvendar com o meu raciocínio que é frio. Tenho que não indagar do mistério para não trair o milagre. Quem escreve ou pinta ou ensina ou dança ou faz cálculos em termos de matemática, faz milagre todos os dias. É uma grande aventura e exige muita coragem e devoção e muita humildade. Meu forte não é a humildade em viver. Mas ao escrever sou fatalmente humilde. Embora com limites. Pois do dia em que eu perder dentro de mim a minha própria importância — tudo estará perdido. Melhor seria a empáfia, e está mais perto da salvação quem pensa que é o centro do mundo, o que é um pensamento tolo, é claro. O que não se pode é deixar de amar a si próprio com algum despudor. Para manter minha força, que é tão grande e helpless como a de qualquer homem que tenha respeito pela força humana, para mantê-la não tenho o menor pudor, ao contrário de você. Ficaram em silêncio.

— Em vez de guaraná, posso tomar um uísque? perguntou ela.

— Claro, disse ao mesmo tempo em que fazia sinal para o garçom. Você está tentando com o uísque intensificar esse momento?

— Sim, respondeu surpreendida com a explicação dele. Ela não sabia beber: bebia muito depressa como se fosse um refresco. Em breve, um pouco encabulada, pedia outra dose.

Ulisses sorriu, enquanto chamava o garçom:

— Beba mais devagar senão vai depressa lhe subir à cabeça. E mesmo porque beber não é embebedar-se, é outra coisa. Mas meu lado de relíquia de ancestrais faz com que eu fique contente de ver uma mulher que não bebe.

O garçom aproximou-se, serviu-a pondo mais gelo.

— E seus ancestrais, Lóri?

— Não sei o que você quer dizer, mas se é sobre minha família, tenho só pai e quatro irmãos. Não me dou com eles. Tentaram me marcar mas sempre foram gente de segundo plano na minha vida, e ainda mais em segundo plano ficaram quando perderam grande parte da fortuna e quase que a maioria dos criados. Aproveitei da confusão e vim para o Rio. Foi uma experiência engraçada e boa a de passar das grandes salas de família, em Campos, para o minúsculo apartamento que todo ele caberia dentro de uma das salas menores. Tive a impressão de ter voltado às minhas verdadeiras proporções. E à liberdade, é claro.

— E quem era de primeiro plano na sua vida?

— Ninguém.

— Apaixonavam-se por você?

— Sim.

— É o que eu imaginava. Eu, por motivos ignorados, desde rapazola tinha um dom: o de acordar alguma coisa nas mulheres. Com você esse dom de atrair os homens não lhe causa nenhuma impressão?

Ela apertou deliberadamente os lábios como indicando que não ia falar.

— Não precisa responder, sorriu ele. Assim como o seu dom de atração age em mim... Você sabe, disse com simplicidade, que nós dois somos atraentes como homem e mulher.

Lóri, já esquentada pelo uísque, sorriu a tanta franqueza.

— Você sorriu! Você sabe o que lhe aconteceu? Você sorriu sem pudor! Ah, Lóri, quando você aprender vai ver o tempo que perdeu. A tragédia de viver existe sim e nós a sentimos. Mas isso não impede que tenhamos uma profunda aproximação da alegria com essa mesma vida.

— Não posso! quase gritou Lóri, não posso, estou perdida. E se me aproximar do que você fala ficarei confusa para sempre.

Ele não respondeu, como se ela não tivesse falado. Ficaram em silêncio até que ela própria sentiu que se recompusera.

— Não estou aqui porque quero lhe dar lições, se não fosse por outros motivos, porque também eu estou aprendendo, com dificuldade. Mas já existem demais os que estão cansados. Minha alegria é áspera e eficaz, e não se compraz em si mesma, é revolucionária. Todas as pessoas poderiam ter essa alegria mas estão ocupadas demais em ser cordeiros de deuses.

Apesar de ser outono era um dos dias mais quentes do ano, Lóri suava a ponto das costas do vestido estarem molhadas, a testa se perlava de gotas de suor que terminavam escorrendo pelo rosto. Parecia estar lutando corpo a corpo com aquele homem, assim como lutava consigo mesma, e que era simbólico ela suar e ele não. Enxugou o rosto com o lenço, enquanto sentia que Ulisses a examinava e ela percebeu que ele estava tendo prazer em olhá-la. Ele disse:

— Você é de algum modo bonita. Gosto de teu rosto suado sem pintura embora também goste do modo exagerado como você se pinta. Mas é que pintada você prova não sei de que modo que não é virgem. Não, não se engane, não pense que eu desejaria que você fosse virgem, aliás de certo modo você é. Quantos homens você já teve mesmo?

— Cinco, respondeu sabendo perfeitamente que ele se lembrava.

— Você sabe, não é, que enquanto sou apenas seu amigo, tenho dormido com mulheres. Com uma fiquei meio ano.

— Imagino, respondeu sem ciúme.

Nunca tivera ciúme dos seus homens mas sabia da possibilidade violenta de ciúme de Ulisses, se ambos fossem amantes.

— Se você chegar a ser minha, do modo como quero, gostaria de ter um filho seu, assim mesmo, com você sem pintura no rosto e coberta de suor.

Ela se assustou um pouco com o inesperado, ele sorriu:

Não tenha medo. Em primeiro lugar, do modo como eu queria que você fosse minha, só acontecerá quando você também quiser desse mesmo modo. E ainda demorará porque você não descobriu o que precisa descobrir. E além do mais, se vier a ser minha desse modo, possivelmente quererá um filho nosso. Porque além de nós nos construirmos, provavelmente vamos querer construir outro ser. Lóri, apesar de minha aparente segurança, também estou trabalhando para ficar pronto para você. Inclusive de hoje em diante, até você ser minha, não terei mais nenhuma mulher na cama.

— Não! exclamou ela.

— Isso não lhe dá nenhuma responsabilidade, boba, riu ele. Isto é problema exclusivamente meu. E certamente você tem também uma idéia errada dos homens: eles podem ser castos, sim, Lóri, quando querem.

O olhar dela tornara-se sonhador, abstrato, um pouco vazio. Ela pensava: se Ulisses estava pretendendo que ela tomasse consciência de alguma coisa para tornar-se uma espécie de iniciada na vida, teria que ser devagar, se fosse de súbito alguma coisa nela poderia ser fulminada. Mas ela sabia que Ulisses também sabia disso, e já lhe conhecia a paciência. Quem estava perdendo a paciência e começando a sentir uma pressa de avidez era ela mesma.

-Clarice Lispector-
in "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres"

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