...e já que estamos nisso, a mulher do farmacêutico será uma criatura livre agora?..
Trabalho-Casa
A minha vida é trabalho-casa, disse ela. Aos fins de semana vai ao supermercado, depois engoma, passa a ferro, limpa. Uma manhã por mês consulta no médico para regular os diabetes. Suspiro:
- Se fossem só os diabetes
e não são só os diabetes, é o colesterol, a tensão, o problema dos ossos.
O trabalho, esse, é na contabilidade de um escritório: duas horas de transportes para cá, duas horas de transportes para lá. Em tempos teve um carro mas o preço da gasolina, mas o preço do seguro, mas o preço da oficina, de modo que o carro está à porta, quer dizer um bocadinho adiante da porta: um sem abrigo dorme no banco de trás, embrulhado em jornais, na companhia de umas garrafitas, a cobrir-lhe os estofos de cascas de laranja. Ultimamente um gato acompanha-o. O sem abrigo chama-se Senhor Peixoto, andou anos a penar na construção até que o joelho deu de si e largou os andaimes. Falta-lhe um dedo e meio na mão esquerda
- Falta-me um dedo e meio na mão esquerda
anuncia a exibir a manga. A mãe do Senhor Peixoto dá ideia que teve instrução
- Até piano havia
mas o senhor Peixoto dava-se mais à moinice
- As mulheres, compreende
ainda foi angariador de seguros mas enfiou as unhas na caixa
- Sem dinheiro não querem saber da gente
de modo que se mudou para os andaimes até o joelho dar de si. À terceira queda o patrão substituiu-o por um preto qualquer
- Um preto qualquer, veja bem
e nem mulheres nem seguros, fominha.
A do trabalho-casa compreende
- É a vida
e aceita-o nos estofos. No inverno entrega-lhe umas serapilheiras para enganar o frio
- Tome lá, Senhor Peixoto
o Senhor Peixoto, que não perdeu a galanteria
- Obrigadinho, madame
a coçar-se
- Não leve a mal, madame
porque o drama dele sempre foi a pele, herdou de um tio das classes altas, sargento, a delicadeza da epiderme
- Os ricos, já se sabe, parecem forrados a seda
e o Senhor Peixoto seda também, que se dá mal com trapos e estofos:
- Nasci para lençóis em condições mas o que se há-de fazer?
A do trabalho-casa está a par, o marido também foi niquento: a questão não era a pele, era a asma, tudo lhe dava asma até que uma primavera com mais pólenes o apagou como um passarinho
- Disse-me adeus com as pestanas
passou do pijama para o fato dos domingos, numa urna quase de mogno, não bem mogno, que o mogno é caro, mas praticamente mogno, nem de perto se notava a diferença, e agora habita uma gavetinha de ferro, entre dúzias de gavetinhas de ferro, no muro do cemitério da terra dele, Abrantes, a fim de os parenteso acompanharem, cada qual a espirrar para seu lado o que sobeja da asma: umas cinzas sobressaltadas, visto que o mundo inteiro sabe que as alergias não descansam. O senhor Peixoto, a quem os cromossomas do tio sargento forneceram cultura e sensibilidade, apoia
- Um tormento
a alastrar nos estofos, pede-me que lhe confirme as noções
- Explique lá você, senhor Antunes, que foi médico
garanto que sim, as asmas são tenazes, pulam a eternidade inteira, a do trabalho-casa ajuda-me
- Quando está tudo calado juro que lhe oiço os soluços
e ficamos os três à espera, em silêncio, mas por embirração o defunto não se manifesta:
- Sempre fez só que o quis
suspira a do trabalho-casa deixando subentendidos séculos de teimosia aborrecida pontuados por
- Não me apetece
insuportáveis. Que idade terão ambos, o vagabundo e ela? Por mim sugeria-lhe que o levasse para o seu rés-do-chão: podia limpá-lo e engomá-lo aos domingos, juntamente com os lençóis e as toalhas, ficar a vê-lo andar à roda no óculo da máquina: talvez que, do meio da espuma, lhe piscasse o olho.
Vontade de perguntar
- Há quantos milénios não lhe piscam o olho, minha senhora?
mas embora sem um tio sargento possuo algum decoro e calei-me. A do trabalho-casa vislumbrou qualquer coisa
- Ia fazer uma pergunta, senhor Antunes?
esperta como um alho o raio da velha, mas apressei-me a girar a caveira horizontalmente
- Nenhuma pergunta, minha senhora, já me chamaram a atenção que volta e meia tenho um ar esquisito
e a do trabalho-casa, subitamente maternal, aconselhou-me
- Devia casar-se, sabia?
E talvez devesse casar-me, realmente, arranjar uma criatura em condições que me tirasse, em simultâneo, as espinhas do peixe e as da alma, me pusesse a pasta na escova e me tratasse por Biju. Quando eu era pequeno a mulher sumptuosa do farmacêutico tinha um cão chamado Biju. Ficava à janela, de Biju ao colo, a fumar cigarros lentos, inacessível, e eu cheio de formigueiros na planta dos pés. A propósito de casamento, e já que estamos nisso, a mulher do farmacêutico será uma criatura livre agora?
A minha vida é trabalho-casa, disse ela. Aos fins de semana vai ao supermercado, depois engoma, passa a ferro, limpa. Uma manhã por mês consulta no médico para regular os diabetes. Suspiro:
- Se fossem só os diabetes
e não são só os diabetes, é o colesterol, a tensão, o problema dos ossos.
O trabalho, esse, é na contabilidade de um escritório: duas horas de transportes para cá, duas horas de transportes para lá. Em tempos teve um carro mas o preço da gasolina, mas o preço do seguro, mas o preço da oficina, de modo que o carro está à porta, quer dizer um bocadinho adiante da porta: um sem abrigo dorme no banco de trás, embrulhado em jornais, na companhia de umas garrafitas, a cobrir-lhe os estofos de cascas de laranja. Ultimamente um gato acompanha-o. O sem abrigo chama-se Senhor Peixoto, andou anos a penar na construção até que o joelho deu de si e largou os andaimes. Falta-lhe um dedo e meio na mão esquerda
- Falta-me um dedo e meio na mão esquerda
anuncia a exibir a manga. A mãe do Senhor Peixoto dá ideia que teve instrução
- Até piano havia
mas o senhor Peixoto dava-se mais à moinice
- As mulheres, compreende
ainda foi angariador de seguros mas enfiou as unhas na caixa
- Sem dinheiro não querem saber da gente
de modo que se mudou para os andaimes até o joelho dar de si. À terceira queda o patrão substituiu-o por um preto qualquer
- Um preto qualquer, veja bem
e nem mulheres nem seguros, fominha.
A do trabalho-casa compreende
- É a vida
e aceita-o nos estofos. No inverno entrega-lhe umas serapilheiras para enganar o frio
- Tome lá, Senhor Peixoto
o Senhor Peixoto, que não perdeu a galanteria
- Obrigadinho, madame
a coçar-se
- Não leve a mal, madame
porque o drama dele sempre foi a pele, herdou de um tio das classes altas, sargento, a delicadeza da epiderme
- Os ricos, já se sabe, parecem forrados a seda
e o Senhor Peixoto seda também, que se dá mal com trapos e estofos:
- Nasci para lençóis em condições mas o que se há-de fazer?
A do trabalho-casa está a par, o marido também foi niquento: a questão não era a pele, era a asma, tudo lhe dava asma até que uma primavera com mais pólenes o apagou como um passarinho
- Disse-me adeus com as pestanas
passou do pijama para o fato dos domingos, numa urna quase de mogno, não bem mogno, que o mogno é caro, mas praticamente mogno, nem de perto se notava a diferença, e agora habita uma gavetinha de ferro, entre dúzias de gavetinhas de ferro, no muro do cemitério da terra dele, Abrantes, a fim de os parenteso acompanharem, cada qual a espirrar para seu lado o que sobeja da asma: umas cinzas sobressaltadas, visto que o mundo inteiro sabe que as alergias não descansam. O senhor Peixoto, a quem os cromossomas do tio sargento forneceram cultura e sensibilidade, apoia
- Um tormento
a alastrar nos estofos, pede-me que lhe confirme as noções
- Explique lá você, senhor Antunes, que foi médico
garanto que sim, as asmas são tenazes, pulam a eternidade inteira, a do trabalho-casa ajuda-me
- Quando está tudo calado juro que lhe oiço os soluços
e ficamos os três à espera, em silêncio, mas por embirração o defunto não se manifesta:
- Sempre fez só que o quis
suspira a do trabalho-casa deixando subentendidos séculos de teimosia aborrecida pontuados por
- Não me apetece
insuportáveis. Que idade terão ambos, o vagabundo e ela? Por mim sugeria-lhe que o levasse para o seu rés-do-chão: podia limpá-lo e engomá-lo aos domingos, juntamente com os lençóis e as toalhas, ficar a vê-lo andar à roda no óculo da máquina: talvez que, do meio da espuma, lhe piscasse o olho.
Vontade de perguntar
- Há quantos milénios não lhe piscam o olho, minha senhora?
mas embora sem um tio sargento possuo algum decoro e calei-me. A do trabalho-casa vislumbrou qualquer coisa
- Ia fazer uma pergunta, senhor Antunes?
esperta como um alho o raio da velha, mas apressei-me a girar a caveira horizontalmente
- Nenhuma pergunta, minha senhora, já me chamaram a atenção que volta e meia tenho um ar esquisito
e a do trabalho-casa, subitamente maternal, aconselhou-me
- Devia casar-se, sabia?
E talvez devesse casar-me, realmente, arranjar uma criatura em condições que me tirasse, em simultâneo, as espinhas do peixe e as da alma, me pusesse a pasta na escova e me tratasse por Biju. Quando eu era pequeno a mulher sumptuosa do farmacêutico tinha um cão chamado Biju. Ficava à janela, de Biju ao colo, a fumar cigarros lentos, inacessível, e eu cheio de formigueiros na planta dos pés. A propósito de casamento, e já que estamos nisso, a mulher do farmacêutico será uma criatura livre agora?
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