07 agosto 2010

...velhos fantasmas...



...ontem tive mais uma consulta no dentista, tentando reparar alguns dos muitos estragos na dentição que 15 anos de estupidezes...

...pode parecer estranho, mas hoje em dia anorexia nervosa e bulimia são encarados como problemas graves de saúde e inclusivamente há consultas multidisciplinares para acompanhar as pessoas que sofrem destes disturbios alimentares. Em 1983, quando tudo se iniciou, o perder 30 kgs numas férias de verão, reduzir o tamanho das calças do 44 para o 34, foi inicialmente encarado como perfeitamente normal (?????) e só quando comecei a desmaiar constantemente, ou cair ao descer as escadas, isto numa miúda de 13 anos foi visto como algo estranho. Mas corria o ano de 1983 em Portugal e isto era apenas encarado como uma mania de uma adolescente. E eu sempre fui grande, até ao início da adolescência - lembro-me que com 10 anos já calçava o 38 e tinha 1,58m... ou seja, na idade em que se costuma começar a crescer, eu já tinha praticamente acabado o meu crescimento. Suponho que haverá causas genéticas - alguns dos meus primos foram e são assim. Em termos ósseos, os ossos são largos e embora não seja obesa,  sempre fui cheínha. Mas também não é normal a uma criança XXL darem-se vitaminas para abrir o apetite por indicação do médico. Convém dizer que o médico em questão, que a minha mãe na altura achava que era um supra-sumo e que tinha a cura para todos os males, tinha 7 ou 8 filhos todos obesos. E ainda hoje os reconheço na rua não apenas pelas feições mas pela sua obesidade.

Na altura, com com cerca de 15 ou 16 anos, a minha mãe decidiu em má hora levar-me a uma consulta e não me receitou vitaminas, mas antidepressivos, que era outra cura para todos os males. Durante o mês em que os tomei  era um zombie - adormecia em qualquer lado e pior do que isso, eu que tinha uma memória fotográfica - bastava ler uma vez a matéria para fixar datas, palavras estranhas e inclusivé a página do livro onde estava determinado assunto - passei a ter dificuldades de concentração e memorização. Decidi cortar de vez com os comprimidos, mas o mal já estava feito. A excelente capacidade de memorizar que tinha perdi-a por completo. E a Biologia de 12º ano  e as Biologias da Licenciatura foram um trauma para mim, porque eu sabia que não conseguia memorizar da mesma forma que os meus colegas o faziam, naturalmente. Cada cadeira feita exigia-me um esforço suplementar e, de facto, ter conseguido terminar a licenciatura, para mim foi o superar uma prova tremenda, que a certa altura pensei nunca conseguir ultrapassar.

Pior do que isso, talvez por causa do corte radical com a medicação e seguramente pelos problemas de auto-estima que tinha, tive algumas depressões graves. A 1a terá sido por volta dos 16 anos e outra aos 19-20. Seguiram-se outras.

Entretanto a anorexia nervosa tinha-se transformado em bulimia, ao ser obrigada a comer. Comia e provocava o vómito e/ou encharcava-me de laxantes. Refeição após refeição. Ainda hoje tenho marcas - uma das mãos tem os típicos calos causados por 15 anos de vómitos provocados e os dentes perderam o esmalte (e continuam com manchas) e muitos deles com o ataque do ácido gástrico partiam ao lavar. Obviamente que em 1983 e nos anos seguintes, no interior de Portugal os cuidados de medicina dentária não primavam pela qualidade (ainda hoje não primam). Felizmente não cheguei a formar úlceras no tracto digestivo.

E era uma vez uma menina com um problema de saúde grave, que não sabia como tratar nem fazia ideia do que era, só sabia que era diferente das amigas e que não se sentia como elas. Acho que a primeira vez que soube o nome do problema que tinha, foi ao ver um episódio da série "Fame", que eu devorava, um ou dois anos depois. Um dos personagens, a Holly, tinha os mesmos sintomas.  E este episódio em particular fez-me perceber que tinha um problema e precisava de ajuda. Mas eu vivia numa aldeia no interior de Portugal, não vivia numa metrópole americana e em Portugal nos anos 80 só se fazia acompanhamento psiquiátrico aos "maluquinhos" e eu era uma miúda normal com a mania das dietas. Uma ou duas vezes fui ao médico de família e os termos anorexia e bulímia eram perfeitamente desconhecidos. Desisti. Entretanto, fui vendo alguns documentários, especialmente na tve, e apercebi-me da gravidade do problema. Mas isso não me fazia sair do buraco em que me encontrava.

Entretanto entrei na faculdade e a minha querida colega de casa - talvez uma das maiores decepções que tive, porque nessa altura ela era uma amiga para mim - só algum tempo depois descobri que ela poderia ser tudo, menos isso!! - conseguiu destruir o pouco amor-próprio que ainda me restava. Obviamente que o problema agravou. Lembro-me que uma vez, talvez em 91 ou 92, quando à Lady Di foi diagnosticada bulimia, que numa conversa casual comentei que sofria do mesmo problema há 7 ou 8 anos. Decidi calar-me e de imediato me arrependi de ter aberto a boca. "Não podes ver nada a ninguém, que achas logo que tens o mesmo problema". De facto, a hipocôndria nunca foi bem a minha praia (contrariamente à dela).

Felizmente, nesse tempo encontrei algumas pessoas especiais e que ainda guardo comigo. E depois de um desabafo com a Beta e a Fau, decidi ir a uma consulta na psicóloga dos Serviços Médico-Sociais da Universidade. Passados alguns anos e em Coimbra, supostamente num meio muito mais culto, os termos anorexia e bulimia ainda eram desconhecidos. E olhando para muitas das minhas colegas, sabia que eram anoréticas ou bulímicas pelo comportamento típico, pela tez, pelas marcas. Uma dessas pessoas foi minha colega no secundário, embora ela fizesse parte da turma de elite e eu de uma turma comum (apesar de ser boa aluna, mas não era "menina bem": os meus pais não eram licenciados nem usava roupinha de marca... por isso a turma "A" estava-me vedada!!). Licenciou-se em Medicina e curiosamente, há uns meses encontrei-a por mero acaso à entrada do Teatro, a entrar para um concerto: a pele macilenta, acinzentada, as mãos vermelhas e com calos, pouco cabelo e ainda mais magra, se é que isso era possível. Fiquei impressionada com o estado da Raquel.

Entretanto, embora nunca tenha conseguido acompanhento médico e psicológico adequado, em 1998, estava eu a leccionar em S.J. da Madeira, decidi que tinha que colocar um ponto final na história. Nos primeiros tempos houve recaídas, mas acabei por conseguir deixar de vomitar. Nas poucas vezes em que desde essa altura tenho vomitado ou é por hiperglicémias elevadas (e aí o estômago nem água suporta) ou por indisposições, como qualquer outra pessoa.

No entanto, ficaram as marcas: em termos psicológicos o trabalho foi muito mais demorado, mas acho que consegui reparar as falhas e os estragos. Tenho noção do que sou e do que valho e aprendi a aceitar-me como sou. Não sou perfeita, mas ninguém é perfeito, mesmo. E em termos físicos, para além da falha na capacidade de memorizar, os problemas na dentição eram bastante graves e dificilmente os conseguirei reparar por completo, apesar do tratamento dentário rigoroso. Mas o esmalte é impossível de recuperar e os dentes estão demasiado enfraquecidos. Ter um sorriso pepsodent é algo inalcançável. Paciência. Está bem melhor do que já esteve.

...e no meio disto tudo, e por inúmeras situações, aprendi que o que importa valorizar em cada pessoa não se vê ao espelho, mas vê-se com os olhos do coração...


(talvez por tudo isto e por ter estado no meio do poço sem fundo me surpreendam certas atitudes e certas declarações de determindas pessoas que vêem nos distubios alimentares uma forma de conseguir saltar para a fama, mas tudo o que aparentemente fazem e dizem não encaixa no padrão típico... mas eu devo estar perfeitamente errada...)

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