09 setembro 2010

...outra prova é esta Sua compaixão para com as saudades que tenho de ti...

Porque te escolho, neste sussurro sem retorno? Porque te quero no meu sono, se iluminaste sobretudo o que não fui? Morreste-me antes que eu morresse – e não consigo morrer sem ti. Nunca consegui. Todos os dias da minha vida estive contigo – como se todas as amizades anteriores fossem só o caminho para chegar a ti, como se todas as amizades posteriores fossem apenas a ausência de ti. Mais delicadas, mais ritmadas, mais claras – menos tu.






Arrumei os amores, é a primeira regra da vida – saber arquivá-los, entendê-los, contá-los, esquecê-los. Mas ninguém nos diz como sobreviver ao murchar de um sentimento que não murcha. A amizade só se perde por traição – como a pátria. Num campo de batalha, num terreno de operações. Não há explicações para o desaparecimento do desejo, última e única lição do mais extraordinário amor. Mas quando o amor nasce protegido da erosão do corpo, apenas perfume, contorno, coreografado em redor dos arco-íris dessa animada esperança a que chamamos alma – porque se esfuma? Como é que, de um dia para o outro, a tua voz deixou de me procurar, e eu deixei que a minha vida dispensasse o espelho da tua? (…)



Foi sem querer. Se te deixei de comover, de te divertir, de te inspirar, meu querido, foi sem querer. Se perdi a capacidade de te ferir e fazer sangrar, foi sem querer. Foi sem querer que te copiei, para não te perder, para não perceberes que se calhar não era capaz. Foi sem querer que se calhar não fui mesmo capaz – preguiçosa, timorata, escondida na gruta da perfeição impossível. Foi sem querer que te morri, em vez de ter engolido uns comprimidos e pegado num telefone para te dizer que me estava a matar. (…) Se eu imaginasse que continuaria dentro da morte a chorar por ti, ter-te-ia procurado em vida para te matar. (…)



Eu queria salvar o mundo. Queria também que me vissem salvar o mundo, sim. Tinha ideias muito precisas sobre como o fazer. (…) Tudo era uma questão de ideias simples, investimento maciço na ingenuidade humana, na qual já ninguém parecia acreditar.



Sabia também como acabar com a tristeza ou solidão de qualquer dos meus amigos. (…) Às vezes magoava-me ligeiramente ouvir, às seis da manhã, depois de uma noite inteira a requentar corações:



– Tu não és capaz de viver sozinha



num tom insidiosamente paternalista. Eu a aguentar o sorriso com uma grua imaginária, pensando nos meus livros, nos testes para corrigir, no estado em que chegaria à reunião da manhã seguinte, e afinal, aquele coração maltratado estava ali a fazer-me um favor. A beber o meu whisky, o meu sono, a parte mais generosa do meu coração, e afinal só porque eu não era capaz de viver sozinha.



É verdade que não sou capaz de morrer sozinha. Ninguém é. Mas morre-se melhor quando não ouvimos a morte a bater à porta, quando ela nos irrompe pela casa como uma visita inesperada.



Sempre gostei de visitas inesperadas – nisso éramos completamente diferentes. Sonhei a vida inteira com uma festa-surpresa que nunca me fizeram – a páginas tantas, tu e todos os outros começaram a dizer-me que já não era possível fazerem-me a tal festa, porque eu vivia em ansiedade à espera dela. «Já não seria surpresa, percebes?». Não, nunca percebi. O Natal não deixava de ser uma surpresa só porque eu já sabia que ele ia chegar. Vivia a sonhar com esse dia em que um de vocês me atrairia a um restaurante à beira-mar onde estariam todos os meus amigos e amores, rodeados de rosas brancas e balões coloridos, com um piano e a guitarra do Pascoal, para me receberem em apoteose ao som de A Sombra das Nuvens no Mar.



Deus não tem particular queda para a música – afinou alguns pássaros, certos tipos de chuva e as ondas do mar, mas deixou aos homens o sublime do som. Sempre tive a impressão de que Deus era mulher – e a Sua falta de talento para a música, se acreditarmos nas análises estatísticas sobre o sexo dos grandes compositores, prova-o. Outra prova é esta Sua compaixão para com as saudades que tenho de ti – uma forma de malícia, claro, mas nem por isso menos compassiva. Faz-me falta a música para dançar ao teu lado neste noante em que vogo. Tive a minha festa-surpresa, sim – apareceram-me todos, carregados de flores, ao lado do caixão. Mas só tu cantas encostado ao gelo da minha boca azul.

 

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